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O contínuo florestal – e a continuidade das florestas

por | 01/06/2021 | Estratégias, Sustentabilidade

Artigo publicado originalmente na Página 22

Em 2005 desenvolveu-se, na Alta Corte Britânica, sob liderança do juiz Ross Cranston (atualmente professor na London School of Economics), uma longa disputa judicial imposta a respeito da preservação de um local denominado Land at Bore Hole and Trenchmann’s Wharf – nome intraduzível para a manutenção de algum romantismo na história. O tema da contenda era a definição de uma árvore. O parecer do juiz Cranston conteve 12 mil palavras para concluir que não há uma definição jurídica para uma árvore. Ele declarou que uma árvore é mais do que uma muda de um indivíduo arbóreo futuro, e também inclui aquelas plantas que poderão vir a germinar em um determinado bosque – que pode ainda não existir como tal. Ou seja, como passou a ser ironicamente tratada a decisão, “uma árvore não precisa existir para ser uma árvore”.

O caso bizarro contrapôs-se à visão de outra imponente personalidade, Lord Denning, segundo a qual uma planta é uma árvore apenas se seu tronco tiver um diâmetro de ao menos sete polegadas. Vale apontar que Lord Denning ocupava a posição de Keeper or Master of the Rolls and Records of the Chancery of England (presidente da Corte de Apelação do Reino Unido), instituição existente desde 1286.

O episódio envolveu também os compêndios da engenharia florestal, com boas explicações biológicas, em geral focadas em métricas e aspectos físicos, como presença de tecido lenhoso, caule perene com diâmetros e alturas especificadas e que usualmente produzem galhos. Apesar das inúmeras abordagens agroflorestais, curiosamente não há uma definição científica taxonômica para esse tipo de planta – assim como concluiu o juiz Cranston de que não existe uma definição jurídica para uma árvore.

O mundo vive hoje um novo debate conceitual: o que são as Nature-based Solutions ou Soluções baseadas na Natureza (SBN)? Qual a abrangência da bioeconomia? Uma abordagem genérica indica a convergência entre SBN e bioeconomia. No entanto, um intenso debate se dá em torno dessas definições. Para organizações do meio acadêmico e da sociedade civil, SBN envolvem ações de proteção, gestão sustentável, restauração ou modificação de ecossistemas que combinem benefícios à biodiversidade e ao bem-estar humano. Atores envolvidos em políticas públicas, investidores e setor empresarial tendem a uma abordagem ampla, englobando atividades que envolvam a produção de externalidades positivas oriundas da exploração de recursos naturais.

Este tipo de discussão não é irrelevante. A sociedade parece ter despertado para a revisão de sua conexão com a natureza de uma maneira mais profunda. Entre a abordagem ampla das Soluções baseadas na Natureza e o intenso debate sobre Green New Deal e bioeconomia, estão as oportunidades que envolvem as florestas.

Além do milenar uso desse tipo de ecossistema para finalidades energéticas e construção, da secular aplicação na produção de papel e tecidos e das mais recentes aplicações em biomateriais de alto valor agregado, crescem as discussões sobre o impacto em mudança climática, recursos hídricos, biodiversidade, respeito aos povos originais, demanda por restauração para resolver passivos ambientais, descarbonização de commodities (minérios, grãos, carne) e endereçamento de elementos reputacionais que afetam negociações internacionais, organizações financeiras e seguradoras.

Mas… o que são florestas? Provavelmente, como nos casos anteriores, a definição é imprecisa, dependente de biomas, culturas e usos.

Formas de relacionamento

O conceito de contínuo florestal é uma alternativa para tratar, sob diferentes formas, do relacionamento humano com florestas. O contínuo inicia-se com a preservação permanente de maciços florestais intocados, segue em um crescente de intervenção humana com o manejo sustentável, passa ao enriquecimento silvicultural de florestas degradadas, avança na restauração de áreas convertidas com o plantio biodiverso e depois para o plantio pouco diverso, inclui o plantio de espécies exóticas de ciclo longo (eventualmente combinadas com espécies nativas) e termina, no extremo, com o plantio de monoculturas de espécies como o eucalipto.

Ao longo do contínuo florestal, todas as alternativas geram algum tipo de impacto positivo. A conservação pura garante a permanência do carbono no ambiente, dentro de um padrão natural de equilíbrio, sem emissão de gases de efeito estufa. Assegura que recursos hídricos se mantenham. Do outro lado do contínuo, os plantios intensos de árvores em monoculturas integradas a Áreas de Preservação Permanente (mosaicos) proporcionam uma acelerada absorção de carbono atmosférico.

Restaurações com repovoamento florestal com espécies nativas, além de recomposição da biodiversidade, podem gerar produtos madeireiros e não madeireiros, com impactos socioeconômicos relevantes, além de prover serviços ambientais. O manejo florestal sustentável, mesmo com a retirada de algumas árvores, garante a permanência da floresta em regiões com alta pressão para conversão, gerando renda e produtos com aplicações na movelaria e construção civil, substituindo materiais altamente emissores de gases de efeito estufa, como concreto, plástico e metais. Estudos indicam que a germinação de sementes dormentes e o crescimento de indivíduos jovens nas clareiras e vias de acesso promovem absorção de carbono.

O contínuo florestal incorpora também sistemas agroflorestais e a Integração Lavoura, Pecuária e Floresta (ILPF). Esses mosaicos de uso do solo se enquadram na abordagem mais ampla das Soluções Baseadas na Natureza, uma vez que garantem preservação, restauração e produção combinada com benefícios à biodiversidade e ao bem-estar humano.

Considerando as mais de 60 mil espécies arbóreas existentes no planeta e as centenas de possibilidades de suas aplicações, para definir contínuo florestal seriam necessárias bem mais que as 12 mil palavras do juiz Cranson e o contraponto de Lord Denning. No entanto, não precisamos delas para um mergulho no mundo florestal. As crescentes perspectivas das SBN e o debate político, fiscal e econômico sobre a bioeconomia indicam que as florestas oferecem um amplo espectro de possibilidades – monetizáveis ou não (mas essa é outra interessante história).

* Roberto Waack é biólogo e empresário, é membro da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia. Preside o Conselho do Instituto Arapyaú e participa do Conselho Consultivo do WWF-Brasil e dos conselhos da Marfrig e da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.

[Foto: Matheus Cuba/Pixabay]

 

ROBERTO S. WAACK

É membro dos conselhos da Marfrig, Wise Plásticos, WWF Brasil, Instituto Ethos, Instituto Ipê e Instituto Arapyaú e visiting fellow do Hoffman Center da Chatham House (Londres). Tem uma longa carreira como executivo e como empreendedor, tendo atuado em empresas nas áreas farmacêutica, de biotecnologia e florestas. Foi CEO da Fundação Renova, entidade responsável pela reparação do desastre de Mariana (MG), co-fundador e CEO da Amata S.A. e CEO da Orsa Florestal, além de diretor da Boehringer Ingelheim e Vallée. S.A. É cofundador da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. Atuação profissional com concentração em governança, planejamento e gestão estratégica, gestão tecnológica&inovação e sustentabilidade. Formado em biologia e mestre em administração de empresas pela USP.

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