Artigo publicado originalmente na revista Página 22
Por Luana Génot e Roberto S. Waack*
Quando o assunto é Covid-19, não podemos dizer que estamos todos no mesmo barco. O mar é revolto, uns estão em seus iates, outros em barcos e alguns em botes furados. A pandemia afeta todos? Sim, mas os recursos para lidar com este inesperado maremoto são completamente diferentes. Quem tem o maior risco de afogamento a curto, médio ou longo prazo continua sendo os que sempre foram os mais vulneráveis da sociedade: negros e pobres, em especial as mulheres negras que figuram na base da pirâmide e estão neste maremoto, em sua grande maioria, em botes instáveis. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a vulnerabilidade das mulheres negras ao desemprego é 50% maior.
A crise afetará brutalmente essa camada da sociedade. Os empreendedores negros, especialmente negócios liderados por mulheres, enfrentarão imensos desafios para manutenção do equilíbrio financeiro, particularmente capital de giro, e dos empregos que geram. Prover condições mínimas para sobrevivência deste importante segmento da sociedade brasileira, durante o necessário isolamento a que todos devemos nos submeter, será vital para a retomada da normalidade socioeconômica do País.
Não se trata de filantropia, absolutamente louvável e necessária, com atividades como produção e doação de equipamentos médicos, antissépticos ou mesmo recursos financeiros. O desafio aqui posto se refere à manutenção desse segmento da atividade econômica durante e depois da grave crise por que passamos.
Muitas dessas mulheres estão à frente de pequenos empreendimentos e fazem parte das cadeias de valor de quase todos os segmentos. Não só como consumidoras, mas por sustentarem parte relevante das atividades empresariais, ainda que indiretamente. Boa parte desses pequenos negócios são iniciativas formais, assim constituídas com imensa resiliência e esforço pessoal. Uma percentagem significativa é informal.
Se instituições regidas por mulheres negras falirem, teremos de fazer muito mais esforços e investimentos para reerguê-las. Como sabemos, foram desenvolvidas em ambiente historicamente adverso e apenas recentemente se consolidaram, graças a iniciativas voltadas para promoção da igualdade racial. Esse desenvolvimento não pode ser brutalmente afetado pela crise econômica que se avizinha. A pandemia não apaga os marcadores sociais de desigualdade, pelo contrário, apenas acentua. As estatísticas continuarão a ter cor, raça, gênero.
“Já me considero falida, mas estou trabalhando para pagar salários”, diz Cristina Guterres, mulher negra empreendedora à frente do Restaurante Atrium em depoimento ao portal Mundo Negro. “Estou tentando fazer máscaras hospitalares para buscar algum trocado”, relata a costureira Marybel Oliveira, também mulher negra, em relato ao Instituto Identidades do Brasil (ID_BR).
Há iniciativas relevantes construindo bases para uma iniciativa de apoio emergencial a esses negócios. O ID_BR, por exemplo, tem divulgado conteúdos em suas redes e apurado as necessidades de profissionais e empreendedoras negras. O instituto promove a campanha “Sim à Igualdade Racial” e tem como missão contribuir para acelerar a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho por meio de empregabilidade, educação e engajamento. Para além de dizer não ao racismo, vê como urgente a construção de uma sociedade antirracista.
Esse esforço pode ser amplificado pela atuação conjunta de organizações, alcançando milhões de mulheres negras e suas redes. O ID_BR tem dialogado, por exemplo, com a Sitawi Finanças do Bem, que operacionaliza programas de doações para diversas finalidades, incluindo, recentemente, o combate aos efeitos da Covid-19. Trata-se de uma organização social de interesse público (Oscip) pioneira no desenvolvimento de soluções financeiras para impacto social e na análise da performance socioambiental de empresas e instituições financeiras.
Sabemos que, no seu devido tempo, será preciso uma articulação do setor privado com governos para que alternativas como essa prosperem. Novos arranjos institucionais serão necessários. No entanto, a urgência e a sobrecarga do poder público com ações sanitárias não permitirão a completa maturidade desses modelos antes de serem aplicados. Empresas deverão ousar, sem comprometimento de sua sobrevivência financeira, na busca de alternativas.
Somos interdependentes. Uma coalizão de grandes empresas e instituições da sociedade civil para nutrir e fortalecer redes de empreendedoras negras, formais e informais, voltada para achatar a curva da desigualdade, poderia ter como paralelo a tentativa de achatar a curva de evolução dos casos de Covid-19. O objetivo é reduzir os efeitos mais drásticos da pandemia na sociedade como um todo e, especialmente, na base da nossa economia. Isso vai além de um favor filantrópico, é uma responsabilidade proporcional ao tamanho que temos como sociedade e como país.
Temos a chance de olhar mais para o lado, em vez de só para nós mesmos. Quando o mar acalmar, quem sabe, poderá voltar a ser um oceano de oportunidades, com embarcações mais dignas para todos os seus navegantes.
*Luana Génot, publicitária, é fundadora e diretora executiva do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), mestra em Relações Étnico-Raciais pelo Cefet-RJ e autora do livro Sim à Igualdade Racial. É fellow da rede de Líderes Responsáveis da BMW Foundation. Foi bolsista sanduíche do Ciências Sem Fronteiras / Capes na University of Wisconsin – Madison, onde se especializou em pesquisa na área de raça, etnia e mídia.
*Roberto S. Waack, biólogo, é mestre em Administração de Empresas pela FEA-USP. Foi co-fundador da Coalizão Brasil Clima Florestas e Agricultura, CEO da Fundação Renova e sócio fundador da Amata. Integra o Conselho de empresas como Marfrig e Wise Plásticos, além de organizações da sociedade civil, como WWF-Brasil, Instituto Ethos, Instituto Ipê, IBGC, FSC, GRI e Funbio. É conselheiro editorial da Página22.
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