Artigo pulicado originalmente na Envolverde.
“Encontrei hoje, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que haviam se zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e o outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas com um critério idêntico ao outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.” (Fernando Pessoa)
A reparação do Rio Doce, após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, é um dos eventos mais discutidos na agenda ambiental e social do país. O desastre em si também. As formas de exposição são as mais variadas possíveis. Em uma única semana, Comissão Parlamentar de Inquérito de Brumadinho, em Belo Horizonte, e Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental, em São Paulo. Isso é muito positivo. Os dois eventos com um objetivo comum: a busca do entendimento do problema e de suas soluções. Sociedade atenta e protagonista. Um dos inquestionáveis avanços oriundos desse triste acontecimento.
‘’Acontecimento? Como assim? Foi crime!”, brado comumente ouvido nos diferentes fóruns. Argumentação que se adiciona a outras qualificações: evento, acidente, desastre, tragédia, homicídio.
Aos poucos, o caso é aprofundado, apesar de a maior parte das manifestações ainda ter enfoque no binômio “se não prendeu e pagou, nada foi feito”. A pressão é válida e compreensível, mas não suficiente. As duras e, na maior parte das vezes, honestas manifestações, demandam maior celeridade e efetividade das realizações feitas na reparação. Costumo repetir meu entendimento de que muito foi feito, mas ainda há muito a fazer. Sem surpresas, o acolhimento desta posição é mínimo. Não reclamo, aceito que a permanente pressão é necessária, mas não suficiente.
É preciso aprofundar a discussão sobre os mecanismos e desafios da reparação. Aos poucos, avançamos. Na CPI de Brumadinho, o representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Thiago Alves, trouxe contribuição sobre como abordar desastres dessa natureza. Não conseguirei expressar aqui a contundência como o ativista apresenta seus argumentos, mas me permiti tentar reproduzi-los porque acredito na sua relevância: a) o direito à reposição dos danos causados, b) o direito à mitigação dos danos, c) o direito à indenização, d) o direito ao reconhecimento de danos morais, e) o direito à compensação, f) o direito ao retorno da normalidade da vida dos atingidos e, se não for possível, a alternativas justas, g) o direito à plena manifestação, pelos atingidos, sobre satisfação com a reparação. A esses pontos somam dois outros de natureza mais ampla: i) esses direitos não são mutuamente excludentes, mas sim cumulativos e, j) a sociedade tem o direito à não repetição de eventos semelhantes.
Esses elementos se referem ao conceito da reparação integral. Inquestionável argumento que se adiciona ao difícil, mas frequentemente construtivo e quase permanente embate com o Ministério Público. Assim avança a reparação do Rio Doce, um esforço coletivo envolvendo mais de 70 organizações integrantes do Comitê Interfederativo e suas Câmaras Técnicas, que orientam e monitoram a Fundação Renova no ambíguo, incerto e volátil contexto dos diferentes desastres do Rio Doce: o histórico de quase um século de desmatamento, ocupação desordenada, desassistência e abandono pelo Estado. Situação terrivelmente agravada pelo segundo desastre, o do rompimento da barragem de Fundão e suas consequências agudas e as decorrentes dos próprios desafios da reparação.
No Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental, discutiu-se o papel da imprensa em situações como o rompimento das barragens, o desmatamento e desastres naturais decorrentes de mudanças climáticas. Tratou-se da pertinência de uma narrativa menos focada na desgraça: caloroso debate sobre a necessidade de expor desastres como o da Barragem de Fundão. Sim, absolutamente necessário expor externalidades (agudas e consubstanciadas como a das barragens, ou mornas, crônicas e subapreciadas como as do uso inadequado do solo e ativos hídricos). Externalidades devem ser expostas amplamente, mas não é o suficiente…
A Coalizão Brasil Clima Florestas e Agricultura estuda como comunicar essas situações. O Forest Stewardship Council – conhecido selo FSC, depara-se com esse dilema há décadas. Como conscientizar e mobilizar a sociedade para evitar, reparar ou mitigar essas situações. As matérias jornalísticas e campanhas são, na sua maior parte, críticas. Necessárias, mas não suficientes…
É preciso aprofundar o debate. Qual o melhor modelo para lidar com transformações socioambientais? Não tenho a menor dúvida de que devem ser participativos. Também não hesito em defender que contemplem todas as partes afetadas, englobem as distintas instâncias dos poderes Executivo e Legislativo nos âmbitos federal, estadual e municipal e tangenciem de perto o campo judicial (evitando exclusiva dependência dele).
Que incorporem a melhor ciência, o conhecimento e os distintos matizes ideológicos trazidos por entidades da sociedade civil. Que se assentem sobre sistemas de governança robustos e legítimos. Que entendam a extensa participação e controle social como complexa e, muitas vezes morosa, pois, assim como a democracia, é imperfeita e demanda contínuo aprendizado e ajustes. Que consigam lidar com as diferentes “verdades”, da forma como Pessoa ilumina. Por isso acredito na alternativa da Fundação Renova como a que mais se aproxima da realidade que desafios desta monta suscitam.
Inevitável a lembrança do conto “O Carvão Amarelo”, do escritor russo Sigismund Krzyzanowski. Em um mundo absolutamente degradado e exaurido, a alternativa para manter a produção foi captar a energia oriunda da tensão e do ódio entre as pessoas, em um ambiente insuportavelmente populoso. A tecnologia – sistemas de captação de energia por contato com placas instaladas em transportes públicos, cadeiras e outros pontos – tem sucesso absoluto, restaurando a prosperidade. No entanto, a capacidade de geração energética se exaure progressivamente, com a sensação de um certo bem-estar, e consequente redução do ódio entre os habitantes. O bem-estar oriundo da sensação de dever cumprido que a expressão da raiva traz ( … o prazer do ódio – Lord Byron), no entanto, não resulta na melhor convivência e busca pelo entendimento.
Desculpem o spoiler: a aposta no ódio gera torpor, imobilismo, proteção reativa e apatia. “(…) já não era possível encontrar as inteligências raivosas, aquelas inspirações iradas, as penas afiadas como ferrōes molhadas na bile. As tintas aguadas, sem mistura de sangue e bile, sem qualquer fermentação, só conseguiam produzir garatujas de ideias confusas, tolas, como borrões. A cultura morria sem glória, sem estrépito. (…) e na entropia crescente da raiva desaparecida não poderia nem mesmo surgir um escritor capaz de narrar dignamente o fim de uma época”. O autor do conto desapareceu na União Soviética, em meados do século passado.
Como ir além da (necessária, mas não suficiente) narrativa da desgraça? Não vejo outra alternativa além de um diálogo com profundidade sobre como lidar com a complexidade dessas situações, mobilizando toda a sociedade, de uma forma construtiva.
* Diretor presidente da Fundação Renova
[Foto: Gustavo Baxter/Nitro]