Em artigo publicado no site Capital Reset e no jornal Valor Econômico nos dias 1 e 2 de agosto, Roberto Waack, Francisco Gaetani, Renata Piazzon e Izabella Teixeira, todos integrantes da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia, abordam como a relação entre democracia e crise climática é inegável.
Em meio a tantas crises, como guerra, insegurança alimentar, saúde, migrações e segurança energética, “a emergência climática depende cada vez mais do multilateralismo e das forças democráticas para a sua priorização”, reforçam os autores.
“Não há como escapar das evidências de que a proteção da biodiversidade não combina com arroubos absolutistas. Não há como fugir do fato de que a legitimidade e a efetividade de políticas fiscais e tributárias relacionadas às mudanças climáticas dependem de decisões desenvolvidas em parlamentos sólidos e respeitados.”
O comércio internacional de commodities, bem como o acesso ao capital financeiro necessário para alavancar um desenvolvimento justo e equitativo não serão plenamente aproveitados diante de um ambiente conturbado e de risco democrático.
Leia a seguir o artigo completo.
O que a democracia tem a ver com mudanças climáticas?
Por Roberto Waack, Francisco Gaetani, Renata Piazzon e Izabella Teixeira*
O mundo se encontra fragmentado, dividido em polos que variam conforme o assunto. Não existem mais alinhamentos automáticos. Neutralidades, alianças, vínculos históricos, relações econômicas, laços culturais e identidades políticas estão em mutação e permanente recombinação.
Vivemos sob o signo de várias transformações, no plano nacional e internacional.
Desde o Acordo de Paris, em 2015, até hoje, tivemos o impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff, o Brexit, a eleição de Donald Trump, o colapso do multilateralismo, a eleição de Jair Bolsonaro, a desastrosa condução do enfrentamento da pandemia do covid-19, a crise econômica-financeira internacional.
A lista é extensa. Tivemos ainda explosão do desmatamento na Amazônia, o truncamento das cadeias produtivas internacionais, a invasão do Capitólio, a Guerra na Ucrânia, o ressurgimento da Guerra Fria misturada com polarização EUA-China, a reconfiguração dos fluxos de abastecimento globais e uma desestruturação dos múltiplos arranjos de governanças nacionais e globais, tais como os conhecíamos.
A emergência climática passou a conviver com as crises política, sanitária, ambiental, econômica, alimentar e social, ao mesmo tempo em que o processo de reestruturação produtiva rumo a uma economia de baixo carbono foi pego no contrapé.
Além disso, a transformação digital decorrente do combo das novas tecnologias que estão revolucionando a economia e a vida em sociedade acelerou-se brutalmente em função da ocorrência da pandemia. Em apenas seis anos, produziu um conjunto de novas realidades que não eram antecipáveis e para as quais não estávamos preparados.
O progresso não é uma inevitabilidade histórica. A trajetória de vários países tem evidenciado isso, com retrocessos impensáveis como observamos na própria América Latina, com profundas desigualdades sociais. Tampouco o risco de guerra entre nações é uma página virada. A fome e a miséria ressurgiram com força.
Mas talvez a novidade mais inesperada desta quadra da história seja o refluxo da democracia, total ou parcial, em várias regiões do planeta.
As duas grandes democracias anglo-saxônicas — os Estados Unidos e o Reino Unido — ingressaram em regimes de turbulência permanente. China e Rússia praticamente têm presidentes para sempre. Brasil e Índia têm dirigentes que flertam com práticas autoritárias. A União Europeia enfrenta ameaças autoritárias, como na Hungria e na Polônia, e incertezas em seus maiores países, como França, Alemanha e Itália.
A emergência climática amplia as tensões do espaço político e econômico em meio a este mundo repentinamente desorientado pela multiplicidade de desafios, dando espaço ao negacionismo — da ciência e climático — e à desinformação.
O futuro foi suspenso porque estamos ocupados demais com um presente que demanda muito e exaure a todos e em que o diálogo e a moderação são confundidos com ingenuidade.
Os tabuleiros internacionais encontram-se truncados: clima, comércio, segurança, segurança alimentar, saúde, segurança energética, migrações…
Neste mundo de vulnerabilidades e oportunidades, protagonizar a inserção do Brasil nas novas realidades em gestação é o desafio da hora. Um novo país emergirá das eleições majoritárias de outubro.
O futuro pede política, negociação, proposição e capacidade de implementação de visões ainda pouco nítidas que se caracterizam mais pelo que não se deseja do que pelo que se aspira.
O Brasil tem historicamente inserção em redes e credibilidade internacional. Nos últimos anos, no entanto, tornou-se um pária. Em meio a tantos binômios (Ocidente x Oriente, Norte x Sul, regimes democráticos x regimes autoritários) e plataformas (ONU, BRICS, G-20, OCDE, COPs, WEF, Basic, Otan, OMC, OMS), a emergência climática depende cada vez mais do multilateralismo e das forças democráticas para a sua priorização.
Não há como negar a correlação da crise climática com a democracia. Não há como evitar a conexão entre desmandos institucionais e danos ambientais, como o desmatamento e o garimpo ilegal.
Não se pode fechar os olhos para a escalada de crime e violência nas áreas com os maiores recursos naturais do planeta e a conexão de milícias e forças paramilitares com o populismo. Ou para a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional e do Estado Democrático de Direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira.
Não há como escapar das evidências de que a proteção da biodiversidade não combina com arroubos absolutistas. Não há como fugir do fato de que a legitimidade e a efetividade de políticas fiscais e tributárias relacionadas às mudanças climáticas dependem de decisões desenvolvidas em parlamentos sólidos e respeitados.
É impossível construir uma agenda geopolítica forte, com sistemas políticos questionáveis, instáveis, sem o reconhecimento de que tenham efetivamente o suporte de seus eleitores.
Não há como sustentar que boas leis escritas (produzidas democraticamente) derretam ao sabor de desvarios despóticos. Não há como tratar de soberania sem cuidar, democraticamente, de bens comuns (nacionais e globais).
O Brasil não poderá usufruir plenamente das imensas vantagens competitivas que tem no campo da produção de commodities sem democracia.
Não há como acessar o necessário capital financeiro para alavancagem de um desenvolvimento justo e equitativo com a permanente exposição desse capital aos riscos das instabilidades institucionais e danos reputacionais em um ambiente conturbado e de risco democrático.
Não há como se calar diante da imensa contradição vigente em um país que, como nenhum outro, pode produzir alimentos e energia, com as menores pegadas de carbono, valorizando sua cultura e biodiversidade.
Um país que, como nenhum outro, pode optar em ser o melhor e mais competitivo ou se consolidar como vilão climático. Sim, a sociedade pode escolher que caminho deseja seguir. Desde que a democracia vigore plena e absoluta. E não há neutralidade possível frente a esta escolha.
* Roberto Waack e Renata Piazzon são, respectivamente, presidente do conselho e diretora do Arapyaú. Izabella Teixeira e Francisco Gaetani fazem parte do programa de fellowship do Instituto Arapyaú. Todos são integrantes da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia
[Foto: Valter Campanato/Agência Brasil]