Artigo publicado originalmente na Página 22, em 17/05/2023
Por Roberto S. Waack, Marcelo Furtado, Ana Yang e Heraldo Geres*
Fenômeno que tem crescido no Brasil e no mundo, a litigância climática consiste em processos judiciais ou administrativos direta ou indiretamente relacionados à mudança do clima, com efeito multiplicador em todas as frentes da agenda ESG, guiada por critérios ambientais, sociais e de governança. Tem por objetivo responsabilizar governos ou empresas ou obrigá-los a implementar ações voltadas para eliminar, reduzir, mitigar ou compensar impactos climáticos.
A litigância climática foi mencionada pelo Painel Internacional sobre Mudança Climática (IPCC), em relatório de junho de 2022, como necessária para alcançar as metas de redução de emissões. Houve uma menção muito específica aos litígios, como sendo um instrumento relevante para impulsionar regulações e mobilizar a sociedade em direção da implementação de metas.
No campo privado, considerando que a responsabilidade empresarial sobre mudança climática ainda se concentra no E do ESG (embora com evidente expansão para o S e G), o aumento da regulação em torno dessa agenda tende a acelerar o ajuizamento de litígios.
Diante de uma profusão de promessas inconsistentes na agenda ESG e de anúncios vazios nas metas net zero (em que as organizações prometem emissões líquidas iguais a zero em determinado horizonte de tempo), a litigância climática surge como ferramenta para expor o greenwashing, o climatewashing, ou o ESG washing.
Empresas têm sido instadas a mostrar o caminho para atingir metas climáticas, com planos íntegros, transparentes e consistentes de acompanhamento e monitoramento. A omissão ou o silêncio ao tratar desses temas tem sido igualmente alvo de instrumentos jurídicos.
A litigância passou a ser usada, portanto, como um instrumento para pressionar as empresas a serem mais cuidadosas e ativas na implementação de seus compromissos frente às questões da crise climática e da perda da natureza, seja combatendo a comunicação exagerada ou falsa (greenwashing), seja combatendo a falta de posicionamento público adequado, quando uma empresa adota uma postura de silêncio para metas socioambientais e de sustentabilidade (greenhushing).
As organizações da sociedade civil, que normalmente têm protagonizado as ações de litígio, procuram causar impacto para forçar mudanças. Por isso, mesmo quando se perde uma ação, há ganhos, na medida em que se cria um efeito multiplicador para que outros players prestem atenção ao assunto. Há intenção de aplicar a “separação do joio do trigo”, com valorização, ainda que indireta, das organizações que têm buscado implementar ações com consistência.
O caso do litígio contra a Shell, por exemplo, foi considerado emblemático para uma mudança de cenário e abertura de precedentes, inclusive quanto à responsabilização pessoal dos envolvidos, em todos os países onde a empresa atua.
Em 15 de março de 2022, a ClientEarth, firma de advocacia sem fins lucrativos especializada em direito ambiental, enviou uma pre-action letter a 13 conselheiros da Royal Dutch Shell, na Inglaterra, com base na alegação de que estavam descumprindo seus deveres legais, ao não se prepararem adequadamente para a transição energética. Depois, em 9 de fevereiro de 2023, a mesma organização ajuizou ação no Tribunal Superior da Inglaterra contra 11 diretores da Shell por não terem gerenciado os riscos que a mudança climática representa para a empresa, alegando que não adotaram plano de transição em conformidade com o Acordo de Paris.
Avanços no Brasil e no mundo
O número de casos internacionais de litigância climática mais que dobrou desde 2015. Do total, 54% tiveram decisões favoráveis às ações contra a mudança do clima. Dos mais de 2 mil casos reconhecidos pelo Grantham Research Institute, aproximadamente um quarto foi proposto entre 2020 e 2022. No Brasil, há 54 casos publicados, segundo a Plataforma de Litigância Climática no Brasil, do Grupo de Pesquisa Direito, Ambiente e Justiça no Antropoceno (Juma).
De modo geral, estão em foco atualmente litígios com base na responsabilidade pelas metas climáticas, pautados em direitos humanos, contra a expansão dos combustíveis fósseis, contra o climate washing praticado por empresas e governos, e em face da gestão de riscos climáticos e emissões do portfólio de instituições financeiras. A análise é do estudo Global Trends in Litigation: 2022 snapshot.
As ações têm sido cada vez mais movidas por organizações não-governamentais, amparadas por advogados de primeira linha, com recursos e respaldo de pesquisas do meio acadêmico. É o caso de um produtor peruano, cujo vilarejo foi alagado pelo degelo anormal dos Andes. Ele entrou com ação contra uma empresa alemã, considerada uma emissora histórica de carbono, em processo conduzido na Cambridge University. Provar a causalidade ou não entre as emissões da empresa e o degelo será determinante para o caso, com julgamento previsto para este ano.
Observa-se no Brasil um crescente engajamento de diversos atores da sociedade, como Ministério Público, órgãos reguladores, organizações da sociedade civil, pessoas físicas, clientes e investidores.
Organizações como Conectas Direitos Humanos, Instituto Talanoa e Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente já publicaram conteúdos sobre o tema, explorando possibilidades e estratégias para maior uso e efetividade dos litígios climáticos.
A Conectas ajuizou, em 2022, o primeiro litígio climático contra uma instituição brasileira, respaldado por estudo elaborado pela Coppe/UFRJ. Os réus são BNDES e BNDESPar, compelidos a adotar medidas de transparência e apresentar planos para alinharem suas ações e políticas de investimento às metas do Acordo de Paris e da Política Nacional sobre Mudança do Clima. A ação busca condenar as instituições por dois papéis, como financiador e como acionista de empresas. Os fundamentos jurídicos desta Ação Civil Pública climática são o dever fiduciário, a observância aos critérios ESG e ao stewardship climático; e o dever de transparência sobre os critérios utilizados nas operações.
Um precedente importante na história do litígio climático no País é o caso do pecuarista Dauro Parreira de Rezende, responsável pelo desmatamento de 14 mil hectares na Amazônia. Além de punido pelo Ibama em autuações pelo dano ambiental, a Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) estabeleceu indenização devida de R$ 44,8 milhões pelo dano climático entre 2011 e 2018. Para chegar a esse valor, o MPF baseou-se no valor de referência do crédito de carbono praticado no âmbito do Fundo Amazônia, de US$ 5 por tonelada de dióxido de carbono.
Como a litigância afeta as empresas?
Na Europa, ao contrário do Brasil, a existência de regras mais claras torna mais iminentes as ações de litígio. Ainda assim, este é um fenômeno que tende a ganhar força no País. Algumas instituições estão sendo financiadas para propor medidas judiciais contra as companhias e seus controladores. A questão, portanto, não é se vai acontecer, mas quando.
Por isso, as empresas brasileiras precisam se antecipar e estar prontas para agir, indo além de prestar informações e assinar compromissos. Vale aqui lembrar o paralelo do caso das ações judiciais contra as empresas de cigarros, consideradas bastante bem-sucedidas.
Empresas de maior porte e projeção tendem a ser alvos de ações de ativistas na medida em que geram mais repercussão midiática – mesmo que estejam mais avançadas em boas práticas na comparação com empresas menores. Isso tem ocorrido nesta primeira onda de litigância.
Em uma segunda onda, é esperada uma maior depuração, pois a tendência é que aumente o conhecimento sobre as causas jurídicas e sobre onde residem as maiores chances de sucesso nas ações.
Um ponto importante de atenção para empresas de países exportadores de commodities, como o Brasil, é a lei anti-desmatamento da União Europeia. Sancionada este ano, impede a entrada na Europa de produtos advindos de áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020, com um escopo que também abrange a questão de respeito aos direitos humanos. Entre as obrigações está a necessidade de realizar due diligence antes de exportar commodities, de forma a garantir o cumprimento dos requisitos.
Como as empresas devem agir?
O chamado climate washing possui duas facetas, uma de ordem jurídica e outra de caráter intangível. Na faceta jurídica, existe uma obrigação legal, que pode ser cumprida ou não. No caso do Brasil, os riscos de se exigir uma obrigação legal ainda são menores porque a Política Nacional sobre Mudança Climática e a NDC brasileira (contribuição que o País deve fazer às metas do Acordo de Paris) não estabelecem limites exatos.
Já a faceta intangível está relacionada à comunicação: é preciso praticar o que se prega (walk the talk). O que falar ou deixar de falar pode causar problemas às empresas. A transparência implica em ter lastro e as empresas devem encontrar o ponto de equilíbrio entre abrir informações e omitir o que ainda não está pronto para ser divulgado.
Uma empresa deve se proteger da litigância tendo seu processo de comunicação muito transparente e eficiente. É evidente que a comunicação deve se pautar em ações efetivamente implementadas. Uma forma de lidar com a crescente onda de litigância é adotar uma comunicação que reconheça as dificuldades e as lacunas, ao mesmo tempo que mostre um plano detalhado e factível de ser cumprido para atingir os objetivos.
É preciso ter humildade: diante de um problema não resolvido, assumir a falha e relatar o que está fazendo para melhorar. A forma de se comunicar não pode ser violenta nem incisiva. A empresa deve ser clara nos valores e princípios, e propositiva nos objetivos.
Também é necessário mostrar quão desafiador é ter total controle de cadeias de suprimento em ambientes de alta complexidade socioambiental. Diante da fragilidade do Estado na elaboração e enforcement de políticas públicas, as empresas experimentam limites de alcance, por exemplo, no poder de polícia. Por outro lado, elas podem exercer mecanismos de controle: identificação, reação e correção. Uma abordagem neste campo é o exercício do poder de custódia das cadeias em que exercem papel de coordenação.
Tendências
A previsão para os próximos cinco a dez anos é de responsabilização civil de diretores, membros do conselho, acionistas e investidores, com destaque para os maiores produtores de energia e alimentos. Outra tendência é de litígios contra Estados, com base no dever constitucional dos governos para promover a transição de uma sociedade intensiva em carbono para uma sociedade de baixo carbono, conforme preconizado pelo Acordo de Paris.
Esse debate inclui apontar os responsáveis por ressarcir perdas e danos, e deve envolver casos transfronteiriços, como no caso do produtor peruano processando uma empresa alemã de energia. Refugiados de Bangladesh ou de ilhas inteiras sujeitas ao desaparecimento pelo aumento do nível do mar podem responsabilizar grandes países emissores ou empresas que não conseguiram reduzir suas emissões no tempo adequado. Também devem ganhar protagonismo os tribunais internacionais de direitos humanos por perda de natureza.
No pano de fundo dessas mudanças, está uma sociedade na qual as novas gerações vêm quebrando paradigmas, como o conceito de propriedade sendo superado pelo de uso compartilhado (Airbnb e Uber) e os conceitos binários. São novas gerações que questionam o propósito do trabalho e os impactos do consumo, o que se reflete, por exemplo, no crescimento exponencial dos mercados vegano e vegetariano.
O bem-estar animal torna-se uma questão central para as empresas de proteína, com potencial para mover litígios, enquanto a questão da diversidade deve se impor para toda e qualquer empresa brasileira. Em um país com mais de 50% da população feminina e não-branca como o Brasil, estará defasada a empresa que não olhar para a diversidade racial e de gênero dentro de seu quadro de funcionários e de lideranças, e não colocar isso como item central de materialidade.
Ainda é cedo para saber se o fenômeno da litigância está alcançando seu objetivo primordial que é mudar o mindset, ou apenas deixando as empresas mais preocupadas e na defensiva. Isso porque ainda não há casos suficientes para compor uma massa crítica que permita a análise.
Mas uma coisa é certa: como o debate na sociedade ficou mais difícil, marcado por contraposição de ideias, a litigância climática foi adotada como uma ferramenta primordial de quem deseja ver a mudança de mindset acontecer, em resposta à urgência climática confirmada pelos últimos relatórios do IPCC e diversas organizações acadêmicas.
Pontos de atenção
- Há crescente aporte de recursos financeiros para esse campo
- Há estruturação de organizações exclusivamente dedicadas ao tema, como a Foundation for International Law for the Environment (File)
- Grandes players jurídicos entram no jogo
- Pessoas físicas, administradores de empresas (conselheiros e diretoria), são alvos em ações combinadas contra as pessoas jurídicas em que atuam
- Essas ações têm como foco não só processos legais, mas atingir valores reputacionais e induzir a acordos com boa projeção midiática
- Os principais segmentos alvo são os da energia e alimentos
- Os compromissos de países – NDCs e decisões da COP 27 sobre mudança climática –, envolvendo mecanismos de perdas e danos, devem impactar não só países, mas setores e empresas
- Os acordos voltados para a garantia da biodiversidade, como a COP 15 da Biodiversidade, também devem gerar elementos para ações de litigância
- Várias regulações dão roupagem a litígios. Exemplos envolvem as recentes medidas de diligências (lei anti-desmatamento da União Europeia) e também regulamentações da Securities and Exchange Commission (SEC), Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Banco Central e outras
- Há forte relação com a comunicação. Compromissos vagos, inatingíveis, levianos ou mesmo a omissão de informações têm sido alvo para litigâncias. Buscam-se essencialmente coerência, qualidade técnico-cientifica e materialidade no tratamento do tema
- Grandes marcas têm sido alvos prioritários, por terem maior visibilidade midiática, maior capacidade de reação e desenvolvimento de metodologias, práticas e modelos de negócios
*Roberto S. Waack é membro do Conselho de Administração da Marfrig; Marcelo Furtado é diretor da Nature Finance e Head de Sustentabilidade da Itaúsa; Ana Yang é diretora do Sustainability Accelerator da Chatham House; Heraldo Geres é vice-presidente jurídico da Marfrig
Os autores agradecem pelas inspiradoras conversas com Werner Grau (sócio do Pinheiro Neto Advogados) e Lina Pimentel (sócia do Mattos Filho Advogados).
[Foto: Li-An Lim/Unsplash]