Artigo publicado originalmente no jornal O Globo pela Uma Concertação pela Amazônia*
A Amazônia não comporta simplificações. Por suas características e sua complexidade, há muitas vozes da e sobre a Amazônia. Incluem os povos originários, quilombolas, ribeirinhos, garimpeiros, pequenos agricultores, populações urbanas e periféricas, migrantes, ativistas, religiosos, militares, políticos e empresários locais e os de projeção nacional, multinacionais e organismos internacionais. Soma-se a isso a Pan-Amazônia, constituída também pelos países vizinhos em que a floresta está presente. As Amazônias são muitas: muitos protagonistas, muitos interesses e muitas possibilidades.
A construção de visões para o desenvolvimento sustentável na região passa por uma transformação da relação dos brasileiros com a Amazônia (ou um novo pacto da sociedade brasileira) a partir do conhecimento da região e da escuta atenta ao que querem as e os amazônidas.
A busca por caminhos para esse desenvolvimento envolve a interação de interesses e objetivos, muitas vezes legítimos e conflitantes. Além disso, demanda abraçar a complexidade de uma região que é retratada no plano simbólico por imagens que vão de santuário ecológico e pulmões do planeta a celeiro do mundo e caixa d’água do Brasil, despertando interesse em algumas áreas, e o abandono em outras.
A Amazônia é portadora de algumas das mais ricas possibilidades de reinvenção do Brasil. Representa mais de 50% do território nacional. Não pode ser tratada como um apêndice, um vazio demográfico, uma reserva de extração de riquezas ou um problema. Trinta milhões de brasileiros moram na região. Mais de duzentos e dez milhões de brasileiros dependem dela para seu futuro.
A Amazônia é parte do Brasil, e não existe Brasil sem a Amazônia. Ela coloca o Brasil no mundo, e o mundo presta mais atenção no Brasil em especial por causa dela.
Para se chegar a uma visão mais integrada da Amazônia, é necessária a combinação de velhas com novas lentes. A multiplicidade de vozes e visões gera ambiguidades e contradições que perpassam a dicotomia entre preservação ambiental e desenvolvimento, assim como as diferentes nuances que entremeiam essas perspectivas dicotômicas.
Concertar essas várias visões significa dialogar, compartilhar e, nesse processo, criar também novos espaços políticos. Significa ampliar a nossa capacidade coletiva de fala e de escuta para acolher as muitas vozes e repactuar continuamente os rumos do desenvolvimento para a Amazônia. Da mesma forma, envolve transitar entre o natural e o artificial; entre a ciência, a cultura e o mágico; entre o urbano e o rural; entre o aquático, o terrestre e o aéreo; entre o estrangeiro e o nativo; entre o público e o privado.
Nas últimas décadas, a Amazônia passou por transformações marcadas por grandes projetos de infraestrutura e por políticas ambientais orientadas para a conservação e, posteriormente, para o desenvolvimento sustentável. Na prática, porém, as tensões decorrentes destas propostas distintas para a região seguem em conflito, ora pendendo para uma dominância predadora — como atualmente — ora pendendo para um esforço de promoção da exploração sustentável das riquezas da região — como nas últimas décadas. Vemos ainda hoje, com clareza, um projeto apoiado na lógica do desmatamento ganhando força e suporte oficial, ao lado de iniciativas de uso sustentável da floresta que resistem à marcha de uma ocupação predatória.
A inserção do Brasil no mundo anda de braços dados com a Amazônia. Precisamos recuperar nossa capacidade de reconhecer e afirmar nossos interesses maiores como nação, assegurando padrões dignos de qualidade de vida a todas e todos os amazônidas e protegendo nosso patrimônio natural e cultural.
Qual futuro queremos construir na, com e para a Amazônia? Os biomas não respeitam fronteiras. Rios, animais e pessoas circulam pelos territórios sem observar as divisões administrativas. No passado, a fronteira era vista como componente espacial em formação, caracterizado pelo potencial de exploração de recursos naturais e expansão da agropecuária. Hoje, a fronteira é o espaço de projeção para o futuro. É onde se estendem as pontes entre os que pensam de forma diferente. Em meio a tantos fluxos, há riscos e oportunidades.
Nesse contexto, o setor público precisa recuperar a sua capacidade de planejamento e de formulação de políticas, observando princípios de coordenação interministerial, pactuação federativa, dinâmicas de governança e de desenvolvimento territorial. Além disso, é necessária a expansão, com qualidade, dos serviços sociais como educação, saúde, infraestrutura e segurança, assim como os de comando e controle e de fiscalização. O esforço de fortalecimento de capacidades estatais nacionais e subnacionais, em especial na própria região Amazônica, é essencial para a alavancagem e potencialização de uma nova abordagem de desenvolvimento da região.
O setor privado é um outro poderoso agente de transformação. Do ponto de vista global, já com efeitos no Brasil, a iniciativa privada reflete as mudanças nas expectativas da sociedade quanto ao papel das empresas na transição para uma economia descarbonizada e regenerativa, que respeita os direitos humanos e valoriza as relações com acionistas, fornecedores e consumidores. A revolução promovida pela ascensão da chamada Governança Ambiental e Social é irreversível e tem origem no setor financeiro global.
A Amazônia possui uma sociedade civil ativa, mas dispersa. Fortalecê-la implica o reconhecimento de seu papel e do seu protagonismo na busca de outras possibilidades de desenvolvimento na região. Significa apoiá-la na vocalização e na articulação de seus interesses. Implica a criação de espaços legítimos de construção coletiva de soluções. É preciso, para que isso ocorra, construir credibilidade e confiança nas parcerias e alianças.
Os futuros possíveis da Amazônia são muitos, e todos se beneficiarão se eles forem buscados à luz da grandeza que a região inspira e a que seus habitantes fazem jus. Mas muito disso depende das escolhas feitas no presente, da nossa capacidade coletiva de concertarmos trajetórias e da robustez da democracia brasileira. A Amazônia é expressão da identidade civilizatória brasileira, e é como nação, juntos, que nos integramos à sociedade global contemporânea.
* Guilherme Leal, cofundador e copresidente do conselho da Natura; Roberto Waack, presidente do conselho do Instituto Arapyaú; Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente; Francisco Gaetani, professor da Ebape/FGV; e Ana Toni, diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade, são integrantes da rede Uma Concertação pela Amazônia
[Foto: Tamara Saré/Ag. Pará/Fotos Públicas]