Artigo publicado originalmente na Revista Brasileira, No. 122, da Academia Brasileira de Letras
Por Roberto S. Waack*
A angústia derivada da quantidade e qualidade das informações a que estamos expostos é uma das principais características dos tempos bicudos que vivemos. A relação entre informação e verdade é amplamente discutida. Dizem que estamos expostos como nunca a informações tidas como mentirosas. No entanto, grande parte da história humana esteve à mercê de narrativas com pouca ou nenhuma conexão com o que se pode chamar de verdade. Estamos cercados de produtos derivados de informações científicas, administrativas, econômicas e sociais. Mas, provavelmente, o maior volume de informações que direta ou indiretamente consumimos e que nos mantém vivos é oriundo da expressão de genes.
O poema “Da verdade não quero mais que a vida”, escrito mentirosamente por Ricardo Reis, provoca reflexão sobre o imenso (não mais incomensurável) volume de informações derivadas da expressão de material genético, definidor do conceito de vida. Nos alimentamos de expressões gênicas, adoecemos por causa delas, nos vestimos em grande parte graças a elas. Produzimos bioenergia derivada do que os genes da cana-de-açúcar expressam. Nuances de cores, sabores e aromas decorrem, em grande parte, da informação genética de plantas, animais e microrganismos. Não tenho a informação sobre o vinho preferido de Fernando Pessoa, mas ele certamente conhecia a verdade que as videiras expressavam. Suspeito que o efeito etílico derivado de fermentações microbianas sobre o açúcar produzido por uvas maduras teve influência na derradeira estrofe: “[…] que os deuses dão vida e não verdade, nem talvez saibam qual a verdade”.
O fato é que as tecnologias voltadas para o sequenciamento genético de todas as espécies vivas do planeta estão disponíveis e acessíveis. A decodificação de como funciona a expressão das informações contidas nos códigos genéticos avança numa velocidade assombrosa. O volume de dados, memórias e padrões “artificialmente” processados é avassalador. A intimidade da humanidade com a natureza se revela como nunca. Ou melhor, talvez só tenha comparação com o que populações indígenas vivenciam, de forma diametralmente oposta à dos cientistas com seus laboratórios e ferramentas tecnológicas.
A natureza, especialmente a biodiversidade, oferece situações cujo conhecimento científico está longe de ter totalmente dominado. A diversidade biológica pode ser abordada sob a ótica gênica, ou seja, ela é fruto da expressão de materiais genéticos. O sequenciamento genético digital de plantas, animais e microrganismos permite acessar uma biblioteca de dados que, correlacionado a bases de dados sobre o ambiente onde vivem, abre um campo assombrosamente complexo, perigoso e fascinante. A manipulação desse imenso volume de informações passou a ser possível com o advento da inteligência artificial (IA). O domínio dessas informações, associado a estratégias públicas e empresariais nos campos da saúde (novos fármacos), da segurança (armas biológicas), da transição energética (bioenergia) e da segurança alimentar (novos alimentos), por exemplo, pode ser o alicerce do que alguns pensadores chamam de Bio Age, ou era do domínio das informações que regem a vida de uma forma geral, em toda a sua diversidade. Códigos genéticos expressam verdades oriundas de informações bioquimicamente bem-organizadas, bem mais precisas do que as criadas por humanos. A IA nos aproxima dessas verdades.
De maneira geral, a maior parte do debate tem se dado em torno das externalidades negativas da IA, provavelmente em função da reação ao desconhecido e ao controle tecnológico exercido por poucas empresas globais neste campo. No entanto esse novo conjunto de tecnologias terá impacto positivo em várias frentes. Mudanças do clima, por exemplo, têm afetado o mundo todo, mas a capacidade preditiva de eventos climáticos tem se mostrado insuficiente. É bastante conhecido o desafio de se combinar dados e identificar padrões no campo da ciência meteorológica. As novas tecnologias têm uma imensa contribuição a dar neste campo. Mais do que prever eventos de curto prazo, estratégias de adaptação para uso do solo e produção de alimentos já contam com ferramentas baseadas em IA para identificação de áreas de agricultura, localização de indústrias processadoras e alternativas logísticas. A transição energética já utiliza instrumental avançado para definir a localização de unidades de energia solar e eólica. Fronteiras tecnológicas como produção de hidrogênio ou mesmo captura de carbono do ar contam com esse novo arsenal. Soluções para a crise climática já usufruem da IA, até porque essa tecnologia é altamente demandante de energia e recursos hídricos.
O uso de IA no geomonitoramento já é realidade. A combinação de imagens satelitais com drones e sensores das mais diversas formas é usada na agricultura de precisão, em análises de solos, no controle de desmatamento e na rastreabilidade de commodities. A bovinocultura, por exemplo, gera imenso volume de dados sobre o local onde bezerros nasceram, sua genética, como e quando foram transportados para unidades de engorda, onde foram abatidos, quais as condições sociais, trabalhistas e fundiárias das propriedades envolvidas, como o bem-estar desses animais foi gerenciado, os tipos de pastagem e alimentação, o uso de aditivos alimentares para redução de emissões de metano e as emissões de gases de efeito estufa das unidades industriais e da logística de distribuição. Essa grande quantidade de dados só pode ser transformada em informações gerenciais com o uso de IA, para fins regulatórios e para o consumidor final. Transações comerciais de commodities alimentares e minerais no mundo já são plenas usuárias de avançadas ferramentas tecnológicas.
O Brasil conta com o Código Florestal, uma legislação ambiental altamente sofisticada. Sua aplicação num território tão amplo e diverso quanto o brasileiro impõe desafios de georreferenciamento e cumprimento de condições legais das propriedades agropecuárias. Tais questões poderão ser equacionadas com o instrumental provido pela IA — um exemplo de como ela poderá ter papel na valoração do capital natural existente nas diversas atividades relacionadas ao uso do solo.
O capital natural é extremamente complexo e dinâmico, e um de seus maiores desafios é sua caracterização. As tecnologias que permitem caracterizar solos e seus componentes, recursos hídricos, carbono e biodiversidade podem ser conectadas, via IA, aos serviços ambientais oferecidos por esse capital natural. Estoques de carbono, capacidade de remoção de gases efeito estufa da atmosfera (a restauração florestal é o melhor exemplo), concentração de minerais estratégicos, oferta de recursos hídricos, controle de chuvas e capacidade de resiliência a intempéries climáticas representam alguns desses serviços. Debates sobre como valorar e transacionar os serviços ambientais têm sido intensos, mas é inegável o potencial das tecnologias de IA em contribuir para a necessária visibilidade econômica que a natureza precisa ter. A equação conservação-produção, tão discutida nos debates sobre segurança alimentar e bioenergia, é altamente dependente da adequada caracterização do capital natural.
Nesse aspecto, o debate sobre regulação ambiental é central, pois os instrumentos para esse fim, no Brasil e no exterior, têm se mostrado frágeis para enfrentar o desafio da gestão de recursos naturais e da nossa relação com a natureza. A quantidade de externalidades negativas produzidas pela atividade industrial, pela produção de commodities e pelo uso da terra é muito grande. Por outro lado, não há o devido reconhecimento de efeitos positivos, como a existência de áreas de conservação entremeadas com as frentes de produção agropecuária. A IA terá papel na explicitação desses impactos.
Por outro lado, a necessária regulação dessas novas tecnologias e ferramentas certamente não será suficiente para o controle de suas externalidades negativas. A “domesticação” da IA provavelmente virá da combinação de instrumentos regulatórios, com tecnologias que evidenciarão inverdades científicas, criaturas artificiais travestidas de humanos ou outros seres vivos. Parece evidente que os modelos normativos tradicionais de regulação não são suficientes para lidar com a complexidade desse campo e, mais ainda, com a sua relação com os recursos naturais. O tema é ampla e frustrantemente discutido nas conferências globais sobre biodiversidade. Parece claro que será necessária a adoção de mecanismos de regulação mais fundamentados em princípios do que abordagens normativas. O modelo normativo certamente não dá conta da indomabilidade da relação da IA com recursos naturais, pois parte do pressuposto de que é possível antecipar e conhecer todas as variáveis envolvidas no que se pretende regular.
Como visto, o uso da IA no campo do capital natural é vasto e desafiador. Como sói acontecer com os chamados problemas indomáveis, não há uma única resposta a ser dada. Pelo contrário, demanda a aceitação da complexidade e a fuga radical de soluções simplistas.
Os desafios associados à compreensão da extensão e limites da IA para a humanidade se potencializam quando sua aplicação se dá na enredada, difusa e dinâmica cadeia da natureza. Não há informações suficientes e nem racionalidade completa nos campos da ciência, economia, política ou sociologia que possibilitem uma formulação definitiva do “problema” (ou oportunidade) em questão. Seus efeitos afetam múltiplos atores da sociedade de formas distintas. Não parece haver espaço, tolerância e imunidade para as consequências das soluções advindas da aplicação da IA no campo da natureza.
Sempre existirá pluralismo de visões e dilemas sobre o problema e, portanto, ocorrerão críticas. Haverá, por um bom tempo, várias abordagens, muitas delas discrepantes e ambíguas. A escolha de explicações e justificativas será arbitrária, não sendo possível um julgamento final sobre as soluções apontadas. Tal quadro gera comportamentos distintos: o imobilismo, o enlouquecimento, a simplificação ou o mergulho no caos que essa nova fronteira nos apresenta. Esta última atitude é a única que nos permitirá usufruir das imensas oportunidades que a IA oferece para lidar com os desafios das mudanças climáticas e a valoração definitiva do capital natural do planeta.
* Biólogo e mestre em New Institutional Economics, conselheiro empresarial, atuante em órgãos de governança da Marfrig, Tupy, Natura, WiseBraskem e Arapyaú. Associated Fellow na Chatham House.
[Foto: DJI-Agras/Pixabay]