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Desastres: aprendemos algo?

por | 25/01/2020 | Desastres, Estratégias

Artigo publicado originalmente em O Estado de S.Paulo.

Talvez apenas o rascunho de alguns caminhos. No campo das tragédias diretamente causadas por atividades humanas, alguns princípios são fundamentais: o compromisso dos responsáveis pelo desastre com a reparação integral; a intensa participação dos atingidos no encaminhamento das ações de reparação e compensação; uma abordagem sistêmica, transversal e ampla do evento no território impactado, considerando aspectos socioambientais e o contexto histórico-cultural; e a aceitação, desde o princípio, de que não há soluções prontas, perfeitas, racionais, demandando abertura e engajamento em um longo processo de aprendizado coletivo.

Quatro pontos de partida para imersão em ambiente hipercomplexo com demanda de ações rápidas e concretas. O mundo jurídico, absolutamente necessário, não é suficiente e depende de integração com o ambiente político, este, sim, determinante. Ações emergenciais de curtíssimo prazo não devem se confundir com frentes estruturais ou compensatórias de longo prazo.

Resguardada pelos princípios, a execução das ações é exposta a desafios críticos. O primeiro é o entendimento, o dimensionamento e a delimitação da abrangência do desastre. Por ser dinâmico, com desdobramentos ao longo do tempo, a fotografia do evento se transforma em um dramático filme, com final indeterminado. Assim, não deve haver a expectativa de pleno entendimento num prazo curto e, consequentemente, a definição de compromissos reparatórios e compensatórios deverá ser construída, coletivamente, a médio prazo, sem o comprometimento da execução de ações emergenciais, grande parte de caráter provisório. É preciso ter consciência da impossibilidade de visão convergente deste entendimento. Ambiguidades nas soluções propostas serão a tônica do processo reparatório, incluindo o desenho do modelo de governança.

O entendimento do evento pressupõe a identificação e mobilização dos diversos segmentos da sociedade direta ou indiretamente implicados. O grupo mais importante neste processo é o dos atingidos – em geral, comunidades heterogêneas preponderantemente assentadas na economia informal e abandonadas pelo Estado. Na maioria dos casos, sem estruturas formais de organização, com pouca experiência na indicação de representantes para os longos e complicados debates voltados para o desenho de modelos de governança e encaminhamentos técnicos.

Dentro ou fora de uma estrutura de governança, os diversos segmentos da sociedade implicados no desastre continuarão a existir e vocalizar seus pleitos de distintas maneiras. As discussões sobre modelos, sobre quem deve controlar o processo da reparação, são extremamente complexas. Ao final, seja qual for o modelo de governança escolhido, participarão da reparação as empresas, órgãos reguladores, Ministério Público, comunidades atingidas, organizações da sociedade civil, a academia, poderes públicos dos âmbitos nacional, estadual e municipal em suas três naturezas: legislativos, executivos e judiciários.

Em princípio, quanto mais inclusivo for o modelo de governança, mais efetivas serão a implementação e a efetividade das ações de reparação no longo prazo. Mas certamente, quanto mais inclusivo, mais complexo e menos eficiente será o processo decisório de curto prazo.

O conceito de reparação integral é extremamente complexo e idiossincrático. Inexoravelmente tem que ser enfrentado. Inclui o entendimento social e jurídico sobre direitos objetivos e difusos como a reparação dos danos, o direito ao retorno da normalidade da vida, a mitigação ou compensação de danos que não puderem ser reparados, as diversas formas de indenização de danos materiais, econômicos e morais, e finalmente, o direito à plena participação e manifestação dos atingidos sobre a reparação.

É preciso evitar a armadilha da tecnificação extrema. A ciência e tecnologia, o conhecimento acadêmico nas áreas social, ambiental, da engenharia, da justiça e outras não são suficientes. É preciso convívio intenso com o contexto histórico, as memórias, os desejos e ambições da população impactada. A chamada abordagem da paisagem, proporciona inclusão da dimensão sensível das comunidades atingidas e permite contato com elementos culturais derivados da arte, críticos para tangenciar minimamente memórias.

No caso do desastre de Fundão, qual o significado da frase amplamente difundida: “Eu quero o Rio Doce de volta”? Qual Rio Doce? O de 2015, degradado, empobrecido, abandonado pelo poder público, ou o Rio Doce das imagens idílicas, florestadas, de Rugendas e viajantes como Wied-Neuwied e da literatura de Rubem Braga? O desastre alterou o rio, mas não apagou eventos marcantes de sua história que se fundem com o triste evento, impactando não só o presente, mas afetando substancialmente o passado (as memórias) e obviamente caminhos futuros.

O encaminhamento das ações emergenciais, da abordagem da reparação integral, do entendimento e dimensionamento do evento, do engajamento dos diferentes públicos afetados, do desenho do modelo de governança, são fundamentais para que o conjunto de ações técnicas seja efetivamente implementado. O desenho das soluções não é trivial. Não há soluções prontas.

Em geral, históricos de abandono e de políticas públicas inadequadas geraram altíssima taxa de informalidade econômica e situações críticas de vulnerabilidade. O desafio de combinar a reparação com a fragilidade institucional implica uma necessária e complexa interação com poderes locais, com agendas diversas e expectativas de suprimento de funções que não devem ser atribuídas à responsável pela reparação. Uma longa lista de passivos políticos e empresariais se mescla com a do desastre, provocando um caldeirão de componentes ideológicos explosivos. Situação inevitável, mas que precisa ser enfrentada com objetividade e disposição para aprendizado contínuo em um ambiente de racionalidade limitada.

As críticas ao desempenho serão inexoráveis e frutos da dramaticidade do evento, do passivo gerado e do histórico da relação dos responsáveis com as comunidades atingidas. O conjunto de expectativas nunca será atingido, pois a memória e os desejos serão formatados pelo andamento do processo da reparação e sua relação com a sociedade. Diferentes visões (verdades) surgirão o tempo todo. A profundidade não será passível de tratamento na mídia do dia a dia. Só há uma verdade absoluta: externalidades causam imensos danos e precisam ser objeto de profundas revisões de modelos de negócios.

*Roberto S. Waack foi presidente da Fundação Renova, entidade responsável pela reparação dos danos causados pelo rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana

[Foto: Komuh Digital]

 

ROBERTO S. WAACK

É membro dos conselhos da Marfrig, Wise Plásticos, WWF Brasil, Instituto Ethos, Instituto Ipê e Instituto Arapyaú e visiting fellow do Hoffman Center da Chatham House (Londres). Tem uma longa carreira como executivo e como empreendedor, tendo atuado em empresas nas áreas farmacêutica, de biotecnologia e florestas. Foi CEO da Fundação Renova, entidade responsável pela reparação do desastre de Mariana (MG), co-fundador e CEO da Amata S.A. e CEO da Orsa Florestal, além de diretor da Boehringer Ingelheim e Vallée. S.A. É cofundador da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. Atuação profissional com concentração em governança, planejamento e gestão estratégica, gestão tecnológica&inovação e sustentabilidade. Formado em biologia e mestre em administração de empresas pela USP.

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