Artigo publicado originalmente no Anuário de Sustentabilidade 2024 do Um Só Planeta
Roberto S. Waack*
A relação entre ser humano e natureza tem sido conturbada. Desastres climáticos afetam ambientes urbanos e rurais de forma sem precedentes. As crises energéticas e de segurança alimentar, diretamente associadas à destruição do meio ambiente, somam-se a crises de saúde, como se pôde constatar na pandemia de covid-19. A disseminação de vírus causada pelas alterações ambientais é um fato que tem se mostrado cientificamente concreto, e desperta preocupações sobre o potencial surgimento de novas doenças conectadas ao desmatamento de florestas tropicais.
Mas é na natureza, justamente, que o desenvolvimento humano terá de se apoiar para enfrentar os problemas herdados pela era industrial, até então calcada na exploração predatória e insustentável dos recursos naturais. Em tempos de avassaladores avanços tecnológicos no mundo digital, com implicações em comunicação e inteligência artificial (IA), o conhecimento biológico poderá oferecer as bases para uma nova era civilizatória, abrindo um rol de possibilidades para lidar com tantos desafios.
A biodiversidade é o depositário natural de informações gênicas, com imenso espectro de expressões traduzidas em compostos químico-orgânicos para os mais diversos fins. O reconhecimento desse patrimônio biológico como capital natural tem crescido, catapultando de forma exponencial os esforços dos naturalistas dos séculos 17 e 18 na coleta e no estudo de amostras em museus botânicos de todo o mundo. Isso ocorre, por exemplo, na busca por maior diversidade alimentar, que basicamente significa diversificar nosso cardápio, e na demanda por espécies de plantas e animais mais resilientes ao impacto climático. Ou seja, há uma procura de soluções por meio da biodiversidade para atender a demandas comportamentais e de segurança alimentar diante da mudança do clima.
Esse futuro já começou. Novas fronteiras do conhecimento exploram, por exemplo, a relação da inteligência artificial com a natureza. A conexão da IA com a “inteligência” gênica utiliza algoritmos computacionais para combinar sequências de diferentes formas de vida e criar seres totalmente produzidos pela engenharia genética. Tal tecnologia, que tem sido bastante utilizada nas áreas farmacêutica e agrícola, promete inovações impactantes nas áreas da saúde e da produção de alimentos, embora tenha imenso potencial destrutivo, como guerras biológicas. Os sistemas multilaterais, incluindo a COP da Biodiversidade, dificilmente terão, no curto prazo, o poder regulatório desejável para lidar com a nova biotecnologia.
Entre as boas novas, observa-se o crescente protagonismo político dos povos originários, sem dúvida os mais conectados ao mundo florestal e à natureza como um todo. A conexão do meio ambiente com a economia criativa do lazer, do bem-estar e da cultura emerge como uma tendência evidente.
Além disso, a valorização de ativos da natureza cresce, enquanto modelos de medição, monitoramento, valoração, monetização e distribuição de benefícios econômicos e de propriedade intelectual surgem ao redor do planeta.
A pressão para que se adotem novos modelos de produção é imensa, envolvendo as esferas das finanças e o ambiente legal. A exposição de grandes marcas relacionadas a impactos ambientais já causa danos reputacionais relevantes, mas não é apenas a imagem que está em jogo. A transformação de passivos morais em legais se potencializa com o crescente número de casos de litígios climáticos, que responsabilizam sob a lei empresas e seus administradores por danos causados ao ambiente.
Diante disso, indústrias voltadas para a extração e transformação de recursos naturais, entre elas a de combustíveis fósseis, mineração e parte do agronegócio, deverão passar por mudanças profundas nas próximas décadas. Por outro lado, modelos de negócio fundamentados em restauração e regeneração da natureza continuarão a se multiplicar.
Pressão semelhante recai sobre o ambientalismo. Novas formas de atuação das organizações da sociedade civil, além da importantíssima frente de geração de conhecimento e conscientização da população, demandam estratégias e programas capazes de promover maior integração entre a conservação ambiental e a produção econômica. O ativismo ambiental deverá ser mais pragmático no campo do advocacy e na formulação de políticas públicas realistas, com implementação e impacto mais efetivos.
Diante de todas essas transformações à vista, não é difícil prever o surgimento de uma era calcada na valorização da vida, mas também de novas oportunidades produtivas e de mercados. Podemos visualizar maior conexão criativa, de intimidade e respeito com a natureza, com rebatimento em bem-estar, equitativamente distribuído no planeta.
Poderemos, ainda, imaginar o grande cientista e naturalista prussiano Alexander von Humboldt (1769-1859) menos amargurado com a fragmentação do conhecimento sobre biologia, voltando a encher plateias ávidas em saber mais sobre a natureza, seus mistérios, sua instigante complexidade, aplicados em sistemas de produção menos utilitaristas e mais integrados ao bem viver.
* Biólogo, presidente do Conselho do Instituto Arapyaú e um dos fundadores da rede Uma Concertação pela Amazônia
[Foto: szjeno09190/Pixabay]