Entrevista publicada originalmente pela revista Página 22, em 01/08/2008
Por Amália Safatle
De onde partirá uma orquestração que aponte caminhos para as questões globais? Instituições criadas no pós-guerra não parecem tão eficazes em gerir as crises, enquanto florescem mecanismos supranacionais alternativos – as chamadas round tables – que aglutinam representantes dos mais divergentes grupos de interesse da sociedade e mostram como o diálogo, ainda que conflituoso, gera soluções criativas, inovadoras e de maior legitimidade.
As mesas-redondas já são realidade nas economias florestal e agrícola e, para Roberto Waack, presidente do Conselho Internacional do Forest Stewardship Council (FSC) e do Conselho Consultivo do Instituto para o Agronegócio Responsável (Ares), representam uma mudança de paradigma na governança mundial. Biólogo de formação e presidente da Amata – produtora de madeira certificada candidata à concessão pública da Floresta Nacional do Jamari, em Rondônia -, Waack defende que o Brasil se apoie nesses fóruns de discussão, nos quais já exerce protagonismo, em vez de temer ameaças à soberania na exploração de recursos naturais e colocar-se como vítima nas negociações sobre comércio internacional.
A sua empresa é uma das interessadas em explorar as florestas nacionais por meio de concessões. Quais são os riscos socioambientais dessa exploração, tendo em conta que a Amazônia historicamente padece de falta de fiscalização e regulação?
O risco existe de qualquer forma. A floresta, seja uma reserva de proteção permanente, área indígena, área de concessão, área privada, está exposta a esse risco. A concessão mitiga o risco, porque o concessionário vai ter incentivos para usufruir da economia da floresta de acordo com regras bem claras – diferentemente do que acontece com as áreas onde não há atividade econômica. O manejo em geral propicia uma intimidade com a floresta, pelo fato de ter que fazer o inventário 100%, fazer as trilhas, conhecer as espécies, ter especialistas em florestas transitando, ter auditoria de impacto ambiental. Tudo isso reduz o risco do abandono.
O abandono da área explorada é o principal risco?
Mesmo em áreas não exploradas. Essas áreas, que teoricamente deveriam permanecer intactas, estão abandonadas. O Estado não tem meios para manter a vigilância em mais da metade do território brasileiro. Estamos falando de 350 milhões de hectares, mais que a Europa inteira. Por mais que se tenha o Exército, a duplicação do Exército com funcionários do Ibama, ou sistemas de satélite, a chance de se garantir que a floresta não será convertida ou depredada é pequena.
O incentivo econômico basta para reduzir riscos, ou são necessárias a regulação e a fiscalização?
É preciso ter, sem dúvida, mas certamente o incentivo para manter a floresta em pé é econômico. Isso está alinhado com o jeito como o mundo funciona hoje, gostemos ou não. E é muito importante, porque há incentivo econômico para cortar a floresta. Estamos em um jogo de forças entre os dois tipos de incentivo.
O senhor acredita que já está superada a discussão sobre os riscos?
Não. O grande desafio da concessão é ver que instrumentos de monitoramento serão postos em prática. Com a floresta mapeada e o processo de gestão acordado e contratado, o monitoramento fica mais fácil. Outro elemento redutor do risco é a criação de um mercado alternativo para quem está na ilegalidade, como madeireiros que não têm alternativa de renda. Mas não estamos falando de eliminação de risco, e nem de ausência do Estado, que tem o poder de retirar a concessão se as regras forem quebradas e vai continuar a fazer o monitoramento por satélite, o controle do transporte da madeira.
Quando se vislumbra uma economia da floresta para o Brasil, o que lhe vem à mente?
O conceito de economia da floresta é de uso múltiplo, que pode se dividir em três categorias. Madeireiros, não-madeireiros – frutas, sementes, óleos, essências, ainda pouco viáveis economicamente – e serviços ambientais, que é a nova onda. O Brasil não pode continuar como mero produtor de madeira sem adição de valor para os mercados internacionais e vendo nestes mercados o negócio florescer. É preciso trazer o valor do negócio para dentro do País. Isso implica tecnologia, conhecimento de como trabalhar com a madeira. A que vendemos são toras rústicas, pranchões. E lá fora se veem as maravilhas que se fazem com esses produtos, porque há toda uma atividade profissionalizante voltada a essa indústria. Um elemento fundamental na criação da economia florestal tropical é um processo educacional que capacite jovens.
Fora isso tem o componente de ilegalidade. Não há investimento em serrarias que são montadas e rapidamente desmontadas em lugares diferentes.
Sem dúvida. Eu entro, tiro o que puder, serro rapidinho, vendo e vou pra outro lugar. Essa lógica se quebra com o manejo, pois são projetos de longo prazo, você vai ficar em um lugar durante dois, três ciclos por 90 anos. Então me deixa montar uma serraria com tecnologia mais sofisticada e boa formação dos funcionários. Não temos uma boa formação profissionalizante para algo que ocupa mais da metade do País! Nos não-madeireiros não é diferente. Acho que há uma associação romântica desses produtos com os elixires, que tratam tudo, a medicina popular, a emoção de lidar com produto que vem da floresta. Legal, mas precisa ter visão prática, operacional, de não degradar o produto na extração. A castanha-do-pará é excepcional do ponto de vista nutricional, mas subutilizada. A forma como se extrai permite a contaminação, não gera distribuição da renda, não adiciona valor ao produto. A mesma coisa com o açaí e os óleos. Sem um pré-processamento rápido, a maioria dos óleos se deteriora. E aí você está depredando a floresta, pois a extração tem impacto ambiental e o valor não retorna pra comunidade nem pra floresta. E os serviços ambientais são uma estrada infinita. Além do carbono, tem toda a questão da água, a manutenção do solo, a biodiversidade, a paisagem, que têm valor econômico.
Fala-se muito em pagamentos por serviços ambientais, mas quem vai pagar? Por que não se avança nessa agenda? O quanto as empresas estão dispostas a entrar com recursos?
O pagamento por serviços ambientais já é realidade na esfera do carbono. O que não avançou foi a relação entre o carbono e a floresta, que ficou fora da discussão do Protocolo de Kyoto, mas, depois de (a Conferência das Partes em) Bali, está se consolidando. Esse mercado vai chegar. A Fundação Amazonas é um exemplo concreto, a rede Marriott de hotéis é outro: cobra-se um dólar a mais pela diária, se você quiser pagar, para preservar a floresta. Outras formas, que acho robustas, são ligar a preservação da floresta à manutenção de clima. E aí os setores que dependem de chuva, como os grandes negócios agroindustriais, terão interesse em pagar pela manutenção de áreas que de alguma forma geram as chuvas.
A tecnologia para adicionar valor aos produtos florestais naturalmente avançará com o investimento privado ou depende de uma política pública?
Essa é uma discussão muito legal: o papel do Estado na inovação. Não acredito que ela ocorra só com a atuação do setor privado, ou só do público. O sucesso de países inovadores veio da combinação entre política pública e a determinação do setor privado em correr os riscos do desenvolvimento tecnológico. O setor privado no Brasil não tem tradição de correr riscos de inovação. Também não temos uma boa relação do setor privado com a academia, que é distante do mundo da produção. Já as florestas plantadas são exemplo da boa combinação entre política pública voltada para o desenvolvimento, conhecimento em agronomia, melhoramento genético – que é a mesma linha de toda a agricultura brasileira, da Embrapa, da Esalq – e o interesse do setor privado em produzir celulose, ferro-gusa. Foi todo um arranjo que deu certo. Com isso, o Brasil conseguiu desenvolver tratos silviculturais, formas de produção que o transformaram no país mais competitivo em florestas plantadas. Então, parte da economia florestal é bem-sucedida e temos os elementos para fazer o mesmo com a floresta tropical. Mas onde está a Embrapa para a floresta nativa? Que apoio o governo vai dar para isso, para capacitação e desenvolvimento tecnológico?
Por que isso não foi para frente?
Não sei. A gente já passou por ciclos muito interessantes da floresta tropical. O da borracha é um dos mais importantes da história do País. Já foi responsável por 40% da exportação. Talvez haja uma questão cultural de que o desenvolvimento está associado à substituição da floresta, modelo que prevaleceu na Europa, o da conversão da floresta em terras sem cobertura florestal, e isso talvez tenha a ver com o processo de colonização do Brasil. Diferentemente do que aconteceu no Norte da Europa, onde havia uma relação cultural com a floresta, de sobreviver com a floresta. E aí tem assuntos interessantes para discutir, como o quão humano é conviver com a floresta tropical e o quão humano é conviver com a boreal, que tem espaços maiores, oferece menores riscos.
Aqui tem mosquito, malária…
Exatamente, e lá a floresta dá proteção contra o frio, é praticamente o único elemento que garante a sobrevivência em condições extremas. Isso são elucubrações, mas, independentemente desse contexto histórico, há uma questão real que é o modelo de desenvolvimento que se quer para metade do nosso país. Um modelo que seja claro, objetivo, mensurável, com educação, tecnologia, incentivo fiscal, monitoramento e controle.
Desde quando a proposta de concessão florestal foi apresentada até hoje, caiu a resistência por parte de movimentos socioambientais?
A discussão da lei de concessão teve apoio da sociedade civil organizada desde seu início. Claro que existem nichos contra esse conceito, mas as principais ONGs, a academia e o setor econômico ligado ao segmento florestal deram apoio.
O que mostra sua experiência no FSC, que é um conselho formado por múltiplas partes interessadas (multistakeholders), de esferas diferentes? Como se resolvem os conflitos? Há questionamentos às práticas de certificação?
Sou suspeito para falar, mas acredito que esse seja o modelo mais robusto de desenvolvimento da sociedade daqui pra frente. Uma iniciativa como a do FSC, que agora se multiplica em vários outros fóruns, pressupõe que as posições devem conversar e construir um mundo a partir de um consenso. Isso é uma mudança muito grande. Em vez da atitude de ataque e defesa, passa a ser de construção de um caminho possível. Essa é a melhor definição de sustentabilidade: é o caminho possível, é a sua construção. Não existe um modelo único de sustentabilidade. A visão das ONGs sociais é diferente da de ONGs ambientais. Então o grande desafio e a beleza desses fóruns são o compromisso com o diálogo e a busca de soluções factíveis. São pessoas com posições fortes e consistentes, mas dispostas a dialogar para construir – com base nessas posições fortes – um modelo diferente de produção, de comercialização, de criação de economia. Claro, é extremamente conflitante, e às vezes desgastante, doloroso. Mas a minha experiência é de que surgem resultados muito bacanas. Aparecem surpresas e caminhos que nenhum dos três polos – no caso do FSC, as câmaras social, econômica e ambiental – tinha imaginado.
Que tipo de questionamento aparece entre os polos?
Um exemplo prático: o uso de agroquímico. Para o setor econômico, representa redução de custos, aumento na velocidade de produção. Para o ambiental, causa danos ambientais. Para o social, causa danos para quem aplica. Então, há três visões diferentes sobre o tema. É possível eliminar totalmente o agroquímico? Em algumas situações, não. Se os dois polos que preconizam a eliminação total forem radicais, perderão a conexão com a realidade. Firma-se um modelo de certificação completamente contra, mas o econômico continua produzindo com agroquímico. Não adianta, perde o sentido. Então, até onde se pode reduzir o uso, buscar os produtos menos danosos? Nesse processo, constroem-se caminhos para que o problema seja mitigado. Essa discussão melhora as práticas de aplicação e a qualidade dos agroquímicos, que se tornam menos danosos, e cria um estímulo para inovação que não havia. Toda essa pressão tem um poder inovador fantástico, que é amplamente usufruído pela área econômica. E a área econômica percebeu isso. Há vários exemplos no manejo sustentável, de como reduzo impactos, abro uma estrada de um jeito, de outro, que custa até mais barato. São os elefantes que são colocados em cima da mesa e têm de ser tratados. Se olhar sob a ótica do conflito, continua sendo um elefante o resto da vida. Se olhar sob a da inovação, pode se transformar em uma solução muito interessante. Isso é o FSC, esse é o seu dia a dia.
Além do FSC, o senhor citaria quais outros fóruns multistakeholders relevantes e instâncias em que isso acontece?
No Brasil, citaria a experiência da round table (mesa-redonda) da soja, que há dois anos traz uma discussão muito interessante sobre os modelos de produção. É formada por praticamente as mesmas ONGs que atuam no setor florestal e as empresas envolvidas com a cadeia da soja: produtores, indústrias, tradings e sistema financeiro. É importante não só porque congrega esses agentes, mas porque trata de uma commodity significativa para o Brasil e que terá rebatimento em outros produtos agrícolas. O caso da soja já está sendo multiplicado.
Um exemplo é o grupo de discussão da cana, que é local – o da soja é internacional. Existe também a round table do sustainable biofuel (biocombustíveis sustentáveis), também internacional. E tem uma iniciativa muito legal, chamada Iniciativa Tripartite, liderada por Amigos da Terra, Imaflora, Ares e Abag (Associação Brasileira de Agribusiness), que busca critérios macro para o agronegócio como um todo.
Quando os fóruns são internacionais, ultrapassam as fronteiras políticas. Que implicações isso traz?
Esses são novos modelos de governança, novos sistemas de monitoramento e de controle da atividade humana, supragovernamentais. Pra mim, isso é mudança de paradigma de como o mundo funciona. Se algo parecido com isso foi tentado com as ONUs da vida, com o insucesso que a gente vê, aqui é uma iniciativa alternativa com resultados práticos muito tangíveis, como certificação e práticas de produção. Isso implica uma discussão sobre soberania. O governo pode dizer que “aqui no meu país” determinada produção é legal, mas o mercado pode não reconhecer essa legalidade. Esses modelos multistakeholders vão além: trazem elementos de interesse da sociedade global e muitas vezes têm o poder de substituir a relação de poder interno. Por exemplo. Há determinados grupos de interesse que pressionam o Congresso para aprovar leis e acaba prevalecendo o grupo de poder 1, 2 ou 3. Esses fóruns procuram fazer com que os diferentes grupos se reúnam antes de pressionar os respectivos Congressos, e cheguem a conclusões antes de fazer as ações de lobby. Vão fazê-las em cima de modelos previamente acordados e mundialmente aceitos. Então começa um processo de institucionalização global no que se refere às questões sociais e ambientais. A gente vê isso no Zimbábue, na China. É cada vez mais difícil um país dizer: aqui pode ser assim. E o Brasil está exposto a esse tipo de discussão, o que é muito positivo. Tem um grupo que vê como ataque à soberania nacional. Vejo até de forma contrária. O Brasil tem condições de produção sustentável que podem reverter a pressão que vem de fora sobre esses temas. Como se discute a agricultura na Europa e nos EUA no tocante a áreas de preservação permanente e de reserva legal? Todo esse arcabouço que a gente tem no campo ambiental, que é criticado, na realidade é um dos mais sofisticados do mundo. Podemos, inteligentemente, reverter a posição de vítima no que se refere à agricultura mundial e subsídios agrícolas, com o apoio e endosso desses fóruns, e não com medo deles. O Brasil, por sinal, tem assumido liderança em grande parte deles. O FSC é um exemplo. As round tables da soja e dos biofuels são outros. É preciso traduzir essa liderança para o contexto do comércio internacional brasileiro, para a agenda do Itamaraty.
O quanto o Itamaraty está interessado em pelo menos saber o que acontece nesses fóruns?
Não vejo o Itamaraty presente. Acho que não faz parte da sua cultura, é um negócio novo.
Como esses fóruns surgem, de onde partem? Como é a governança, o processo decisório, como funcionam?
Partem de um movimento concomitante em várias frentes. Por exemplo, o setor empresarial começa a perceber que precisa ter práticas melhores pelo fato de que práticas não-sustentáveis não são econômicas a longo prazo. Há um incentivo do próprio setor empresarial em avançar nisso. Ao mesmo tempo, a sociedade civil organizada capta impactos que a atividade econômica gera nas populações, no meio ambiente, traduzem isso em pauta, que se transformam em objetos de pressão. E aí às vezes as pessoas se reúnem. Há uma visão de que são animais completamente diferentes, mas, na realidade, o cara da ONG estudou com o cara que foi pra indústria, eram amigos de infância e começam a conversar. Assim que funciona. Então nascem de modo informal – cada vez menos, porque há, hoje, uma expectativa mundial de que tudo seja resolvido por meio de fóruns round table.
Expectativa por parte de quem?
Do sistema financeiro, dos investidores, dos conselhos. “Escuta, vocês estão falando com a sociedade civil? Porque não quero que minha empresa fique exposta.” Há uma força muito grande, uma conscientização mundial de que precisa mudar as formas de produção.
Isso é uma coisa de poucos anos pra cá?
Esse supercrescimento das round tables é de um ano, dois anos, no máximo. O FSC ficou meio sozinho por praticamente dez anos. Começa nessa discussão informal, passa por uma relação pessoal, pela construção de uma relação de confiança entre os agentes que estão conversando, e essa confiança é fundamental para olhar o elefante que está sobre a mesa. Assim, reconhecem o problema, mas também que têm entre si uma série de coisas em comum. Esse processo normalmente segue para a formalização. Vamos criar um grupo de trabalho, mas como? Tem de ser balanceado. Não adianta colocar dez caras da indústria e um da ONG. Aí começam as discussões sobre governança. Como é que eu governo? Vou dividir em câmaras, em produtores e indústrias? Vai virar uma ONG, uma iniciativa, uma round table? Se virar round table, tenho de ter uma assembleia, definir como se vota, quais as regras. Então surgem os estatutos e a formalização dos mecanismos de governança. Aí entra a fase mais importante, que chamo de storming, na qual se discutem o elefante e as práticas adequadas, o que é ou não aceito, e as grandes negociações são feitas. Uma vez que o elefante foi destrinchado em princípios, critérios, mecanismos de monitoramento, parte-se para certificação, verificação, auditoria, e entra a fase de performance. Divido esse processo em três fases: formação, storming e performance.
Basicamente, temos isso funcionando para produtos madeireiros e agrícolas?
Isso, soja, óleo de palma, biocombustível, açúcar, café, algodão. E aí há outros mecanismos paralelos como o fair trade, voltado para a produção das pequenas comunidades, o fortalecimento da pequena economia. Tem a linha de orgânicos, que também possui players grandes, cadeias de supermercado. É toda uma nova causa que segue por esse rumo supragovernamental e não responde para ninguém, mas para a sociedade como um todo.
Sim, mas ainda são setores específicos da economia. Isso tende a tomar proporções maiores em relação à mudança climática, para pegar um exemplo mais global, impossível?
Acho que sim. Por exemplo, na questão da propriedade do crédito de carbono: de quem é um carbono que não foi emitido porque a floresta permaneceu em pé? É da comunidade que vive na floresta, é do dono da terra, é do governo que proporcionou um programa de controle de desmatamento? Essa é uma discussão bastante sofisticada. A questão dos bens comuns em geral, a água, o solo, minérios, passa por uma orquestração dos atores envolvidos que está acima da decisão de governo.
Mas, por enquanto, a governança global parece restrita àqueles exemplos específicos. Na verdade, não vivemos uma desgovernança? Existe uma globalização, mas todas as instituições globais criadas no pós-guerra não dão conta de resolver os problemas mundiais de hoje, certo?
Sim. E onde está a falha desse sistema? As decisões e os processos são definidos por um grupo de funcionários dessas organizações. São capacitados, mas estão confinados em um ambiente institucional, burocrático. Já fóruns tipo round table congregam gente que está na linha de frente: o produtor rural que precisa mudar sua prática de aplicação de químicos, a empresa que vende, o banco que financia, ou seja, a própria sociedade organizada. Então o poder é muito maior que o de pessoas que, por mais bem capacitadas, terão mais dificuldade de chegar à conclusão do que é melhor para aquele grupo todo. Esse processo doloroso de buscar um consenso, de passar por mecanismos de governança, é extremamente criativo, tem um poder enorme de gerar novos caminhos. E com legitimidade muito maior do que um organismo internacional que chega em um país e diz: eu sou a ONU e você vai seguir essa regra. Tá tudo pronto? Longe disso. Estamos no começo, realmente em uma mudança de paradigma de governança mundial. Ainda é cedo para dizer que não tem sucesso.
Como você disse, vivemos uma desgovernança, que vai se aprofundar por um bom tempo. Acho que um dos pontos mais difíceis é como o consumidor vai conseguir lidar com tanto selo, tanto mecanismo de certificação. Ninguém vai olhar tanto selo. Um é sustentável, outro é correto do ponto de vista energético. Nós, consumidores, ainda vamos lidar com uma bagunça em termos de informação sobre o que é certo, o que não é certo, mas isso será orquestrado e haverá uma depuração dos modelos vencedores e uma consolidação das melhores práticas. Na discussão da Iniciativa Tripartite, por exemplo, vamos pegar a síntese do que é uma boa prática agrícola em geral.
Mas a questão do clima ainda está dentro de um arcabouço burocrático, complicadíssimo, da ONU, que amarra o avanço da agenda.
Está, mas está também no mercado voluntário. Se olhar o desempenho da Chicago Climate Exchange, é impressionante. Significa que o mercado atribuiu valor, não precisa ter nenhum órgão batendo na cabeça de ninguém. Percebeu também valores ligados à reputação, redução de risco. Tem empresa que percebe que causou um dano e que amanhã alguém pode acioná-la, então busca se proteger e começa todo um jogo interessante no mundo das seguradoras. Há cada vez mais investidores institucionais, fundos de pensão, que estão olhando desde já o que será um bom negócio daqui a 30 anos. Embora o cenário ainda esteja bastante confuso, alguns mecanismos começam a se consolidar. Há 100 milhões de hectares de florestas certificadas e US$ 20 bilhões de produtos florestais certificados no mundo. Daqui a 30 anos vamos olhar pra trás e ver esses mecanismos muito bem estabelecidos: a sociedade civil se organizou e concluiu, por exemplo, que uma boa forma de produzir veículos é assim ou assado. Esse é o caminho.
A Amazônia atrai também pelo que está no subsolo – os minérios. O que é preciso para que a população local também seja beneficiada pela mineração e os povos indígenas não sejam desrespeitados?
Quando a gente fala de governança multistakeholder, fala de legitimidade, incluindo o âmbito local, a consulta pública local, e mais que isso: o engajamento permanente com as comunidades locais, porque a realidade vai mudando e é preciso haver adequações contínuas. Na mineração isso é fundamental.
Há alguma certificação socioambiental para mineração?
Não conheço, mas virá. Uma discussão que já tá aí é de como vai ser a exploração do petróleo no Ártico com o degelo. Mas não necessariamente estamos falando de commodities internacionais. Esse tema está chegando nos âmbitos locais, especialmente no que se refere a compras públicas, e o poder de compra do Estado tem grande influência. A maior parte dos mercados mundiais são mercados locais. O Brasil exporta menos de 20% da madeira produzida.
Qual sua visão do etanol celulósico? Pode ser um pulo-do-gato na produção de bioenergia?
Esse é um bom exemplo da inovação que surge dessas pressões todas. Percebemos que, ao converter celulose em etanol, transformamos um problema em solução, para reduzir pressão sobre floresta, aumentar produtividade. Por isso sou muito otimista sobre o que vai acontecer com o planeta. A gente vai encontrar uma solução que nem imagina, como sempre. Por isso essas forças (os agentes multistakeholders) são muito importantes, e, quando elas se sentam para conversar, é impressionante o que surge de oportunidade.
[Foto: Aaron Blanco Tejedor/Unsplash]