Artigo publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, em 12/12/2023
Por Roberto Waack
A COP realizada nos Emirados Árabes Unidos cutucou com vara curta o leão enjaulado da relação dos combustíveis fósseis com o aquecimento global. Dentro da jaula, quase 100 mil fanáticos climáticos, com intenção de serem domadores, a maioria com perfis de equilibristas, trapezistas, palhaços e vendedores de pipoca, além de uma boa quantidade de curiosos atraídos pela monumental arquitetura circense.
O tema central, longe de ter sido domado, foi a transição energética, mais precisamente, se, quando e como o mundo será capaz de deixar de utilizar combustíveis fósseis como a principal fonte de energia. Os termos em inglês phase out e phase down (eliminar ou diminuir gradativamente) definiram os limites da jaula. Nela, as alternativas energéticas se apresentavam como formas de domar o leão, ganhando corpo, mas ainda lidando com sua comprovação econômica.
Ao lado daquela que deveria ser a maior atração, os donos do terreno do circo instalaram outra exibição: uma praça de alimentação com as mais variadas gastronomias. Da agricultura regenerativa às commodities, dos microprodutores comunitários às grandes empresas de alimentos.
Chefs conceituados e donos de restaurantes expunham como os sistemas alimentares deveriam ter maior conexão com a natureza, eliminando o desmatamento, intensificando a produtividade de pastagens e inovando no uso de insumos, máquinas e sistemas produtivos. Ao mesmo tempo, tratavam da ameaça da tempestade que rondava a praça, a resiliência ou a capacidade de reagir e sobreviver às calamidades climáticas que já afetam a segurança alimentar global.
Boa parte do público foi atraído pelo anúncio de um show à parte: o da criação de fundos para cobrir os danos causados pelas alterações climáticas nos países mais pobres. Na última exibição do espetáculo climático itinerante, ocorrida no Egito, foi oferecido ao venerável público a criação de um Fundo de Perdas e Danos.
Embora tenha sido a primeira atracão do espetáculo, acabou gerando frustração. Os artistas se mostraram bastante amadores, apresentando valores em torno de US$ 1 bilhão, menos de 1% do estimado para cobertura dos desastres ambientais nos países mais pobres. Espera-se que, com mais treino e dedicação, na próxima temporada se transformem na grande atração.
Como todo circo, uma sessão não foi aberta à visitação. Não, não se trata da parte reservada aos negociadores, com crachás poderosos, salas reservadas e privilégios junto aos seguranças, evitando as imensas filas de entrada, martírio diário dos demais funcionários do circo. A sessão não aberta apresentava o balanço global dos compromissos e ações implementadas pelas nações, identificando lacunas e indicando caminhos para o atingimento dos objetivos do Acordo de Paris.
O Global Stocktake é uma espécie de inventário de medidas e resultados obtidos para evitar que a temperatura do planeta não ultrapasse 2 °C acima da era pré-industrial, buscando esforços máximos para limitar o crescimento da temperatura a 1,5 °C.
A intenção é que esta seja uma nova atração do circo, onde o distinto público poderá entender como andam as ações para evitar o que poderá ser a maior catástrofe vivida pela humanidade. A melhor visibilidade das ações e resultados é essencial para maior eficácia de políticas públicas nacionais e multilaterais associadas às mudanças climáticas.
Diante do cenário assustador que se aproxima, será correto tratar a COP como um circo? Parto do princípio de que circos são coisas sérias e que palhaços são profissionais da mais alta qualidade. São componentes culturais, portanto, civilizatórios.
“A arte não reproduz o visível, ela torna visível”, como cunhou Paul Klee, numa frase exposta no lindíssimo Louvre de Abu Dhabi. A COP é um movimento civilizatório. Une dois pilares essenciais: a ciência e a racionalidade técnica às emoções ativistas e suas consequências forjadoras de políticas públicas nacionais e multilaterais. Racionalidade e emoção, regras do jogo e sociedade.
Ao lado da evidente fragilidade do multilateralismo cresce o papel das empresas, decodificando sinais e ruídos, buscando entender circunstâncias e contextos, definindo estratégias, costurando acordos, atraindo (ou afastando) capital financeiro, lançando produtos, construindo imagens, lapidando reputações, interagindo com os mais diversos atores do circo.
Como sói acontecer, parte do público repara nos furos da lona do circo. São muitos! Alguns tratam os furos, como propôs o arquiteto Jean Nouvel, no museu do Louvre de Abu Dhabi, com a sobreposição de estrelas octogonais árabes na cúpula de 180 metros de diâmetro. Furos geram “chuvas de luz”.
Fracassos da COP, decorrentes dos referidos furos, podem ser lidos como indicações de futuros movimentos políticos e de mercados. Luzes são derivadas de lacunas, de desejos não atendidos. Não seriam esses os grandes alavancadores de movimentos empresariais? Para alguns, o fracasso gera ceticismo, para outros, a identificação de oportunidades de negócios, tecnologias e produtos.
Dentro desta perspectiva, dois exemplos emblemáticos. Na frente da transição energética e crescente perspectivas para biocombustíveis, Acelem anunciou investimento de U$ 2,5 bilhões, oriundos do fundo Mubadala Capital, para a produção de biodiesel e combustível de aviação a partir da palmeira macaúba, na Bahia e Minas Gerais, em parcerias com sólidas organizações como Embrapa, Universidades de São Paulo, Viçosa, Cornell e Davis.
No campo da maior eficácia no uso do solo, Marfrig e re.green anunciaram parceria para restauração florestal, integrando recuperação de ecossistemas e pastagens à oferta de carne de baixo carbono. Nesta mesma área, a da restauração de florestas nativas, empresas como re.green, Bellterra, Momback, Biofilica/Ipê, Symbiosis e Biomas atingiram captações de mais de R$ 1 bilhão, valores inimagináveis quando empresas como Amata e Arvorar lutavam uma década atrás para comprovar suas teses de negócios.
Diferentemente da preocupante timidez dos anúncios do Fundo de Perdas e Danos, o campo dos sistemas agroalimentares e uso da terra tratou na COP-28 de somas entorno de U$ 20 bilhões na constituição de um fundo envolvendo inovação, resiliência e segurança alimentar. Os números anunciados, sempre imprecisos e confusos, são sinalizadores que a economia de baixo carbono avança. Bilhões de dólares são bilhões de dólares para qualquer negócio, mas não se comparam às estimativas necessárias para completar a transição energética, o phase out ou down, com ordem de grandeza em torno de U$ 5 trilhões anuais, ou mesmo aos subsídios para combustíveis fósseis, também rondando trilhões de dólares.
No entanto, indicam claramente que os furos da lona do circo poderão inspirar uma nova cobertura para o espetáculo, arquitetada pelos trilhões dos petrodólares que produziram o magnífico domo do Louvre de Abu Dhabi. O público (a sociedade), exposta aos cada vez mais frequentes eventos climáticos, está presente grande parte como vítimas, pagando ingressos caros. O Brasil oferece condições únicas para este espetáculo. O setor privado nacional precisa, mais do que nunca, assumir o protagonismo, como o domador de leões.
Especial agradecimento à ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, assessora do presidente da COP-28, dr. Sultan Ahmed Al Jaber, que me proporcionou uma visita especialíssima ao Louvre de Abu Dhabi, recheada de inspiradoras conversas
[Foto: UN Climate Change / Flickr]