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O valor da biodiversidade para a bioeconomia

por | 01/02/2021 | Amazônia, Estratégias

Artigo publicado originalmente na Página 22 pelo Grupo de Bioeconomia da Concertação pela Amazônia*

Florestas, rios e pessoas: elementos a partir dos quais a iniciativa Uma Concertação pela Amazônia constrói referências em bioeconomia para as diferentes Amazônias do Brasil

A diversidade territorial amazônica, refletida em seus povos, culturas, solos, flora e fauna – a sociobiogeodiversidade amazônica –, contém elementos únicos para proporcionar uma vida melhor à humanidade. Perpassa diferentes setores: saúde, alimentação, regulação do clima, bem como pela distribuição de riqueza e promoção do bem-estar social. Sob a perspectiva econômica, a Amazônia dispõe de potencial relevante para gerar riqueza e prosperidade a partir de variados produtos e serviços com qualidade, agregando valor e conservando o patrimônio genético por meio de excelência em pesquisa, desenvolvimento e inovação.

Partindo da premissa de que o desenvolvimento econômico racional, consistente e de longo prazo para a Amazônia deve ser fundamentado no conhecimento da natureza e no entendimento de que a biodiversidade amazônica é o lastro deste processo transformador, tem-se a narrativa da bioeconomia como matriz de desenvolvimento econômico sustentável que evita a simplificação excessiva da natureza que geralmente ocorre quando se busca aumentar a produção.

É certo que muito se tem construído, tanto no plano político quanto no econômico, com relação à bioeconomia. Muitas propostas de desenvolvimento sustentável para a Amazônia giram em torno dela ou pelo menos consideram-na uma potencial alavanca. Alguns autores chegam a defendê-la como a “salvação” da Amazônia. O conceito de bioeconomia já foi definido por diversas organizações, e recentemente passou a ser redefinido para o contexto amazônico, como nos exemplos a seguir:

  • “A bioeconomia engloba toda a cadeia de valor que é orientada pelo conhecimento científico avançado e a busca por inovações tecnológicas na aplicação de recursos biológicos e renováveis em processos industriais para gerar atividade econômica circular e benefício social e ambiental coletivo” (Carta intitulada “Agenda para o destravamento da bioeconomia”, endereçada ao Vice-Presidente da República pelo Instituto Escolhas e outros, 2020).
  • A bioeconomia amazônica se refere “às atividades econômicas e comerciais que envolvam cadeias da sociobiodiversidade sustentáveis e nativas da Amazônia” (Viana et al., 2020).
  • A bioeconomia do Amazonas se refere “às atividades econômicas baseadas na produção, comercialização e distribuição dos ativos ambientais da sociobiodiversidade amazonense, voltados à produção florestal (madeireira e não madeireira), fármacos, química fina, pescado e fruticultura; possibilitando a interiorização do desenvolvimento em todo o Estado e promovendo o empoderamento das comunidades tradicionais, sem deixar ninguém para trás” (SEDECTI, 2020).

Embora alguns estudiosos tenham identificado previamente diferentes visões ou discursos sobre a bioeconomia, estes não abordam explicitamente o fato de que a maioria das discussões acadêmicas e políticas negligenciam o papel da conservação das florestas tropicais. A bioeconomia deve ter como motor não só a conservação do bioma existente, mas a expansão das áreas biodiversas. Como matriz de desenvolvimento, deve buscar atuar sob a mesma lógica atual do agronegócio de expansão de áreas produtivas, entendendo as áreas produtivas da bioeconomia como sendo áreas de expansão dos biomas diversos e não de sua substituição e simplificação exagerada.

No quadro atual, a discussão da bioeconomia para o contexto amazônico tem pouca ressonância com o discurso disseminado em economias industrializadas ou mesmo em outras regiões brasileiras, motivado principalmente pela substituição de materiais e combustíveis fósseis e promoção do setor agrícola, a fim de reduzir emissões de gases de efeito estufa. A produção de matérias-primas, ainda que de natureza renovável, pode gerar efeitos negativos sobretudo quanto à conversão de novas áreas para cultivo agrícola, o que conflitaria com a motivação principal dos que propõem uma bioeconomia sustentável para a Amazônia.

Assim, as diversas definições demonstram a necessidade de se requalificar um conceito já há muito desenvolvido, tanto na literatura acadêmica quanto no mundo das políticas públicas. Essa necessidade resulta, entre outros aspectos, do receio de que as implicações normativas para a agenda de bioeconomia na Amazônia fortaleçam ainda mais alguns vetores de desmatamento e concentração de riqueza e renda, o que seria extremamente contraditório. Em outras palavras, no contexto amazônico, bioeconomia traz consigo uma grande ambiguidade: pode ser tratada como panaceia para os problemas da região ao mesmo tempo em que pode significar uma ameaça à floresta em pé.

As discussões promovidas no âmbito de Uma Concertação pela Amazônia revelaram diferentes interpretações e visões para a bioeconomia e, com isso, também a necessidade de uma referência mais abrangente que as contemple.

O primeiro passo: reconhecer a diversidade de paisagens e contextos

A Amazônia Legal compreende diferentes biomas e tipos de vegetação. A região abriga florestas de terra firme, de várzea e de igapó, além de lavrados e muitas outras fisionomias vegetais. Há tanto áreas de florestas conservadas, quanto áreas desmatadas, e áreas de transição entre as duas primeiras. Também inclui municípios que se assemelham a outros centros urbanos do Brasil. Assim, a reflexão sobre caminhos para o desenvolvimento sustentável da Amazônia exige em primeiro lugar o reconhecimento dessa heterogeneidade. Nesse sentido, os participantes da Concertação conceberam uma estrutura para identificar os elementos que distinguem as Amazônias, num esforço semelhante àquele empreendido por Danielle Celentano e Adalberto Veríssimo em 2007, quando analisaram o padrão “boom-colapso” no modelo de ocupação e avanço da fronteira na Amazônia.

Ainda que qualquer tentativa de simplificação de uma realidade complexa seja passível de críticas, buscou-se elencar para cada uma delas as atividades predominantes e estabelecer as prioridades de ação de forma direcionada. Por tabela, o exercício também permitiu explicitar medidas que devem compor uma agenda transversal de trabalho. Políticas de comando e controle, de combate à ilegalidade, de incentivo à pesquisa e ao empreendedorismo, além de ordenamento territorial, por exemplo, devem compor uma agenda para o território como um todo. A proteção aos povos indígenas e comunidades tradicionais também deve ser prioridade na agenda geral.

No entanto, a Amazônia conservada requer atenção a temas específicos, como os meios de financiamento da conservação e de uma economia florestal compatível com esta, ao passo que no chamado “arco do desmatamento”, uma região que se encontra sob pressão de grileiros e do avanço da agropecuária, são necessárias condições específicas para o desenvolvimento de sistemas agroflorestais, de manejo florestal sustentável e de plantio de espécies nativas. Na Amazônia convertida, uma agenda deve focar na redução de externalidades negativas da produção agropecuária e da mineração.

Para a Amazônia urbana, por sua vez, as análises podem se concentrar nas discussões de saneamento ou de questões de política industrial. Obviamente, o Quadro 1 não esgota todas as opções que devem ser trabalhadas, mas considera a diversidade social e natural e a partir disso oferece uma referência para a elaboração de um plano inicial para qualquer intervenção que busque um impacto abrangente e perene na região.

Deve-se também levar em consideração que as desigualdades socioespaciais são transversais às regiões e que devem ser tratadas de forma central em qualquer proposta de desenvolvimento econômico sustentável que mantenha a floresta em pé.

 

A complexidade engendrada nos diversos temas listados no Quadro 1 não deve ser encarada como um obstáculo intransponível, mas sim um convite à cooperação, articulação e coordenação de esforços entre atores com diferentes capacidades, recursos e saberes. A partir dessa ampla agenda, fizemos um primeiro aprofundamento em relação às oportunidades de desenvolvimento econômico. Dentre tantas ações necessárias, o Quadro 1 distingue alguns tipos de bioeconomia quanto ao impacto sobre os recursos naturais e as populações amazônidas, refletindo o que já foi exposto anteriormente. Afinal, que papel cabe à bioeconomia para o desenvolvimento sustentável da Amazônia?

O segundo passo: um framework para bioeconomia na Amazônia

De forma similar ao framework das Quatro Amazônias, propomos uma tipologia para bioeconomia que pode apoiar uma compreensão mais ampla do tema como um denominador comum para uma estratégia robusta, considerando relações entre elas, não apenas riscos e trade-offs, mas também sinergias e oportunidades. O Quadro 2 a seguir identifica características que distinguem possíveis “frentes de promoção” da bioeconomia, de acordo com diferentes abordagens e sistemas produtivos. Não se trata de uma disputa conceitual. Não foi objetivo do exercício endossar nenhuma classe da bioeconomia, mas sim reconhecer a diversidade de interpretações.

O detalhamento dos três grupos tampouco se traduz em uma classificação estanque, sendo apenas uma representação estilizada que visa ilustrar como as atividades econômicas e vários aspectos relevantes variam ao longo do espectro e identificar e propor ações mais direcionadas. Nesse sentido, vale notar que se considera o conceito de contínuo (agro)florestal, ilustrado abaixo, por trás desses grupos estilizados.

Metodologicamente, parte-se da caracterização das atividades predominantes atualmente para identificar as atividades que poderiam ser incentivadas, os gargalos para o desenvolvimento de cadeias produtivas, as ações necessárias para enfrentá-los, além de modelos de negócios para cada grupo.

Quais contribuições o framework traz?

O Quadro 2 ajuda a tornar mais explícitos os trade-offs e os riscos da agenda de bioeconomia, como o de possível aumento líquido de emissões ou a perda de biodiversidade resultante da substituição de matérias-primas fósseis com o cultivo irrestrito de biomassa. Tais riscos devem ser reconhecidos e tornam fundamental o monitoramento dos impactos diretos e indiretos. Nas cadeias de valor, tais preocupações tornam ainda mais relevantes as salvaguardas socioambientais e os sistemas de certificação.

Já na perspectiva de políticas públicas, uma abordagem integrada deve adotar um compromisso claro com a proteção da biodiversidade e do clima. O Brasil já conta com políticas que apoiam a bioeconomia sob diferentes perspectivas (ciência e tecnologia, agricultura familiar, desenvolvimento regional, energia, entre outros), porém sem coordenação mais ampla. Nesse sentido, a governança de clima no País poderia ser um meio de integrá-las a fim de assegurar que determinadas fronteiras não sejam ultrapassadas.

Quanto às consequências para os negócios, nota-se que em cada domínio há implicações sobre a escala de produção e necessidades e formas de financiamento. Os projetos que envolvem o uso da biodiversidade apresentam diferentes relações entre risco e retorno para investidores. Com isso, têm-se um conjunto específico de políticas a serem adotadas para incentivar negócios em cada contexto.

A reflexão sobre os modelos de negócios que agregam valor à floresta em pé envolve um entendimento mais amplo da bioeconomia que compreende não apenas produtos, mas também serviços, sendo um deles a contribuição para mitigação de emissões de gases de efeito estufa. É preciso que tanto externalidades negativas quanto positivas sejam explicitamente reconhecidas para permitir a viabilidade econômica de negócios em bioeconomia compatíveis com os objetivos de conservação e proteção climática.

Essa reflexão envolve explorar não apenas os valiosos recursos genéticos da floresta tropical ou os produtos florestais em si, mas também os resíduos das cadeias extrativistas ou urbanos. Ainda que existam bons exemplos de como promover a bioeconomia circular na própria região, isso seria uma oportunidade de aproveitar mais contribuições da experiência internacional, especialmente porque a maior parte da população da Amazônia brasileira vive em áreas urbanas.

O framework de bioeconomia também poderá auxiliar na identificação de sinergias relacionadas a uma agenda de P&D. Diz-se que a biodiversidade é uma sofisticada fábrica de moléculas. Pesquisas de prospecção de moléculas na floresta podem beneficiar a inovação nos processos produtivos voltados para novos materiais que se baseiam na produção intensiva de biomassa, já que as inovações podem ocorrer no tipo de matéria-prima, nos processos de conversão ou nos produtos.

Por fim, o framework de bioeconomia poderá auxiliar os governos locais a construírem políticas públicas mais adequadas para valorizar a sociobiodiversidade por meio do conhecimento e dos negócios e escolher parcerias nacionais e internacionais para a evolução de uma matriz econômica que tenha como premissas a floresta em pé e a diminuição das desigualdades socioterritoriais.

Certamente outras conclusões podem ser tiradas do framework. Os próximos passos incluem a organização, pelos abaixo referidos, do Fórum Estadual de Bioeconomia do Amazonas, estado que já tem utilizado o framework para facilitar conversas visando a construção de políticas públicas mais adequadas para a região. Além disso, busca-se, a partir desse exercício inicial, explorar modelos de negócios para cada uma das bioeconomias que possam viabilizar projetos estruturantes para a região amazônica.

*Grupo de Bioeconomia da Concertação pela Amazônia:
Roberto S. Waack, Renata Piazzon e Inaiê Santos, Instituto Arapyaú
Cláudio Pádua, Instituto Bionegócios
Marcello Brito, Associação Brasileira do Agronegócio (Abag)
Tatiana Schor, Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Amazonas (SEDECTI-AM)
Mariano Cenamo, Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam)

[Foto: Bruno Cenim/Ag. Pará/Fotos Públicas]

 

ROBERTO S. WAACK

É membro dos conselhos da Marfrig, Wise Plásticos, WWF Brasil, Instituto Ethos, Instituto Ipê e Instituto Arapyaú e visiting fellow do Hoffman Center da Chatham House (Londres). Tem uma longa carreira como executivo e como empreendedor, tendo atuado em empresas nas áreas farmacêutica, de biotecnologia e florestas. Foi CEO da Fundação Renova, entidade responsável pela reparação do desastre de Mariana (MG), co-fundador e CEO da Amata S.A. e CEO da Orsa Florestal, além de diretor da Boehringer Ingelheim e Vallée. S.A. É cofundador da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. Atuação profissional com concentração em governança, planejamento e gestão estratégica, gestão tecnológica&inovação e sustentabilidade. Formado em biologia e mestre em administração de empresas pela USP.

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