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Propostas para um sistema nacional de rastreabilidade bovina

por | 03/05/2024 | Governança, Sustentabilidade

Artigo originalmente publicado na Página 22, em 29/04/2024

Por Amália Safatle, Roberto S. Waack, Paulo Pianez, Izabella Teixeira e Leonel Almeida*

Conhecer a procedência de um bem, para garantir que sua produção não causou impactos negativos no meio ambiente, no clima e em populações vulnerabilizadas, é uma prática cada vez mais comum – e sem volta – no comércio internacional. A rastreabilidade socioambiental na cadeia de valor das commodities ganhou holofotes recentemente, quando a União Europeia aprovou a European Deforestation Regulation (EUDR) que, em essência, determina punições aos compradores de produtos envolvidos em desmatamento e exploração ilegal de mão de obra. Mas as exigências do mercado internacional não vêm de hoje.

Basta lembrar do controle sanitário exercido há décadas pelos importadores para garantir produtos livres de doenças, como febre aftosa, vaca louca e gripe aviária, e de contaminação por agrotóxicos em grãos. Em países da África, a rastreabilidade social é praticada há anos na cadeia do cacau, por exemplo.

A regulamentação europeia agrega um elemento novo à antiga geopolítica comercial, ao enfatizar a conservação da sociobiodiversidade e do equilíbrio climático no trade global. Embora o mercado europeu não seja o maior, tem apelo político e é capaz de influenciar outros atores de peso, como China, Estados Unidos e Reino Unido. Os dois últimos já preparam regulamentações que devem vigorar em breve, enquanto o mercado chinês está atento à movimentação, sempre buscando priorizar seus interesses comerciais.

Ainda que as restrições possam ser usadas como barreiras não-tarifárias, o comércio internacional evolui na direção de medir cada vez mais as externalidades (efeitos positivos ou negativos de uma decisão que são sentidos por quem não participou dela). Essa evolução decorre de pressões ambientais e climáticas da sociedade civil organizada, dos consumidores e da agenda ESG. Com isso, os elementos socioambientais têm sido incorporados como atributos dos produtos e, como tal, precisam ser monitorados e rastreados. Trata-se, portanto, de um caminho inescapável. E, ao contrário do senso comum, o Brasil tem muito a se beneficiar disso.

Comparado à maioria dos países, em especial os do Hemisfério Norte, o Brasil é capaz de produzir commodities com a menor pegada de carbono, devido a suas condições climáticas, disponibilidade de solo e água, e matriz elétrica predominantemente renovável – isso, claro, se conseguir controlar o desmatamento.

Na medida em que políticas de rastreabilidade evoluem para uma forma mais ampla de medir externalidades socioambientais e climáticas, o Brasil tem mais a ganhar do que a perder com esse jogo, e por isso deve colocar essas questões com mais força na mesa diplomática.

A cadeia de valor da pecuária é uma das mais expostas às exigências de rastreabilidade. A carne bovina é uma das principais commodities da economia brasileira e, além disso, há um escrutínio crescente sobre a relação entre a produção de gado e o desmatamento, especialmente por parte dos recentes movimentos de consumidores e investidores europeus.

Criar um sistema nacional de rastreabilidade bovina tornou-se uma das tarefas mais prementes para a indústria pecuária no Brasil, de modo a atender a exigências de compradores estrangeiros, seja do ponto de vista sanitário, seja ambiental, além de cumprir compromissos ligados à agenda climática – e, com isso, garantir a boa posição do País no mercado internacional.
Há crescentes exigências especialmente por parte da União Europeia sobre desmatamento e condições de trabalho, e da Rússia e China em relação à defesa sanitária. Estes dois países não aceitam determinados tipos de promotores de crescimento e querem ter a confiança de que o produto não contém esses agentes. Já a EUDR determina a proibição da importação de produtos provenientes de áreas com qualquer nível de desmatamento identificado até dezembro de 2020 – legal ou ilegal. A regulamentação foi aprovada em junho do ano passado, devendo ser aplicada em 18 meses a partir desta data, ou seja, no fim deste ano.

Para fazer frente a essas demandas comerciais – e as que devem vir em seguida por parte do Reino Unido e dos EUA –, o setor exportador e as grandes empresas têm se debruçado sobre o desenvolvimento de um sistema nacional robusto de rastreabilidade, a ser implantado o quanto antes. Empresas, entidades setoriais e organizações da sociedade civil têm se articulado desde o ano passado para propor soluções conjuntas.

Já existem três propostas na mesa, duas das quais em elaboração no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). A outra já havia sido apresentada durante a New York Climate Week pela Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), pela Marfrig e pela consultoria Agroicone no fim de 2023, propondo a combinação de dados da Guia de Trânsito Animal (GTA) e do Cadastro Ambiental Rural (CAR).

As propostas no âmbito do Mapa estão sendo elaboradas por duas secretarias. Uma é a Secretaria de Defesa Agropecuária (SDA), que propõe a rastreabilidade individual do gado para fins sanitários, e recebeu um modelo de proposta elaborado pela Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável em conjunto com a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.

A outra é a Secretaria de Inovação, Desenvolvimento Sustentável, Irrigação e Cooperativismo (SDI), que propõe o cruzamento de dados das propriedades rurais, com um olhar sobre a situação socioambiental das propriedades, e que recebeu recentemente o apoio da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, por meio de um manifesto publicado em sua plataforma.

As três propostas não são excludentes, e sim complementares e sinérgicas. Considerando a convergência entre elas, a decisão mais estratégica é começar pela solução de rastreabilidade mais rápida e menos onerosa, de modo a atender rapidamente às exigências e agir sobre as áreas mais críticas, enquanto o governo e os produtores se preparam para implantar e se adequar à rastreabilidade individual, mais demorada.

Vamos detalhar cada uma das três a seguir.

1.CAR+GTA

Bastante debatida desde o ano passado, a combinação entre os dados já disponíveis de CAR e GTA é uma proposta capaz de responder rapidamente à necessidade de rastreabilidade ambiental, a baixo custo e em larga escala. Por isso, é considerada uma low hanging fruit, que já está à mão para ser implantada, desde que haja endosso político.

Esse sistema prevê acoplar as informações do CAR das propriedades produtoras à GTA, documento já exigido normalmente na comercialização de gado para atender a padrões sanitários. O registro do CAR permite o acesso ao perímetro da propriedade e consequentemente a seu status de conformidade a exigências ambientais, como respeito à Reserva Legal e a Áreas de Proteção Permanente. Enquanto isso, a GTA já possui um campo a ser preenchido com o código do CAR. A questão é que esse preenchimento hoje não é mandatório em todo o Brasil. Em São Paulo, por exemplo, é preenchida a coordenada geográfica, mas em outros estados, não.

A proposta apresentada pela Abiec, portanto, é que esse preenchimento passe a ser exigido nacionalmente, inclusive com o código do CAR, possibilitando que a informação sobre todos os elos da cadeia (por meio dos códigos de CAR) esteja disponível, sem, contudo, expor dados sensíveis ou pessoais, permanecendo em total acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

A GTA funciona como uma passagem de avião, do ponto A ao B, que precisa ser impressa para que os animais possam ser desembarcados para o abate. Sem esse ticket, não há desembarque. Havendo informações sobre o CAR nesse ticket, o problema da rastreabilidade estaria resolvido.

Mas há ainda outra questão a solucionar: atualmente esse ticket informa apenas o último trecho dessa viagem. Se o gado passou por outras fazendas anteriores, nas etapas de cria, recria e engorda, isso não é informado às indústrias frigoríficas. A informação existe, mas não é disponibilizada. Assim, a proposta é que as GTAs, ao serem emitidas e uma vez contidos os códigos de CAR, possam disponibilizar os números que compõem o histórico de todos os elos da cadeia produtiva pelos quais os animais passaram.

Mitigação de riscos

Diante de pontos de atenção levantados por produtores e serviços veterinários estaduais que operam e detêm a informação da GTA, a proposta elaborada pela Agroicone busca mitigar os riscos apontados por esses atores.

O primeiro risco apontado diz respeito à abertura das informações da GTA ao público. A disponibilização de dados, como quantidade de gado, é uma informação valiosa para quem produz e precisa ser tratada com cuidado e sigilo, uma vez que poderia propiciar manipulação de mercado pela indústria, ou qualquer outro stakeholder. Mas a proposta não exige que se saiba a quantidade de bois dos produtores, e sim de onde estão recebendo ou movimentando os animais. Esse esclarecimento tem ajudado a azeitar o diálogo com a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e com os produtores. Além disso, a proposta não fere a LGPD porque no número do CAR não é atribuído o nome de seu proprietário ou qualquer outra informação pessoal ou sensível.

O segundo risco, apontado por veterinários, é que o uso de GTA para fins de controle ambiental extrapola a função do documento – um instrumento definido por lei como de uso exclusivo sanitário, ao qual nada poderia ser atrelado. O temor é que se a GTA for usada para fazer monitoramento ambiental e inibir a compra de gado de áreas de desmatamento, poderá haver trânsito de gado sem GTA, ou emissão de GTA informando o lugar errado.

Se isso acontecer e houver uma ocorrência sanitária, como um foco de febre aftosa, o sistema não conseguirá mais identificar a origem e o controle sanitário, que tem funcionado bem até então, se desmantela. A proposta, contudo, não exige a GTA em si, e entende que esse instrumento deve ser preservado. O que se pede é a informação sobre o trânsito dos animais, para se identificar o território de origem e ou por onde os animais potencialmente possam ter transitado anteriormente.

Há uma dificuldade adicional: os bancos de dados de informação de GTA não estão centralizados no Ministério da Agricultura, e sim divididos em cada estado. Com isso, será preciso negociar com 27 estados separadamente para conseguir implementar uma solução. Mesmo assim, os proponentes acreditam que é preciso insistir nessa proposta, pois é a única maneira de obter rastreabilidade no curto prazo. Diante disso, é preciso sensibilizar o Mapa, a CNA e os estados.

O caminho para a implementação poderá se dar via acesso aos dados dos estados, ou por meio da plataforma que está sendo construída na SDI, detalhada a seguir.

2.Plataforma AgroBrasil+Sustentável

Elaborada na SDI, a Plataforma AgroBrasil+Sustentável propõe a integração de informações de diferentes bases de dados, entre o Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Siscar), o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), o Serviço Florestal Brasileiro, os mapas de Terras Indígenas e as listas do Trabalho Escravo e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

A plataforma em si não fará a rastreabilidade, e sim permitirá a integração a dados de outros sistemas, tais como GTA, chips e brincos ou notas fiscais. Com isso, haverá uma espécie de “certidão negativa” das propriedades que estão em conformidade com exigências socioambientais legais. A proposta de rastreabilidade CAR+GTA pode, portanto, beber nas informações dessa plataforma.

Esse sistema está sendo construído por meio de um convênio do Mapa com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e com o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro).

Segundo informações do Mapa, a plataforma on-line disponibilizará informações organizadas, rastreáveis e confiáveis sobre a produção agrícola sustentável, sendo uma alternativa estratégica para que o produtor possa atender as exigências do mercado europeu e de outros importadores. Será uma ferramenta voluntária, universal e gratuita para certificação da produção agropecuária com objetivo de integrar bases de dados públicos, qualificar as informações da produção agropecuária do Brasil e será utilizada para comprovar as técnicas sustentáveis adotadas no campo aos mercados consumidores mundiais. Reunirá informações sobre a origem dos produtos, as práticas agrícolas utilizadas e os impactos ambientais.

O projeto consiste em três fases. A primeira prevê qualificar a propriedade. Para isso, o produtor deve informar seu status, mostrando que está dentro da legalidade, e se, por exemplo, atende a regulamentação da União Europeia, ou se está apto a acessar o crédito do Programa ABC, de Agricultura de Baixo Carbono. A previsão de lançamento deste primeiro módulo é julho próximo.

Os próximos módulos serão voltados a qualificar a produção, indicando, por exemplo, se é sustentável, se é de baixo carbono, se faz integração lavoura-pecuária-floresta, ou restauro. E, por último, vai integrar essas informações a sistemas de rastreabilidade existentes.

A Coalizão entende que a Plataforma AgroBrasil+Sustentável será crucial para promover transparência e disponibilizar dados públicos relevantes relacionados à produção rural do País. A entidade ainda defende que a criação da Plataforma não deve ser um esforço iniciado do zero, mas aproveitar iniciativas existentes.

Entre elas, estão o Observatório da Agropecuária Brasileira, gerido pelo próprio Mapa, e outras bases de dados tecnicamente robustas e disponíveis, como o MapBiomas, cujas informações são utilizadas por diversos atores, inclusive bancos públicos e privados.

Para a Coalizão, é essencial que a Plataforma possua um datalake de base de dados integrados e transparente, assim como as funcionalidades necessárias para alcançar seus objetivos, considerando a abrangência, escala e periodicidade dos dados, especialmente aqueles relacionados ao desmatamento. Para isso, propõe o estabelecimento de um grupo de trabalho de assessoramento técnico que permita uma contribuição multissetorial para desenvolvimento, teste e implementação dessa nova ferramenta.

3. Política Nacional de Rastreabilidade Individual Obrigatória

Em 19 de março passado, a Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável, juntamente com a Coalizão, protocolou junto à SDA uma proposta de rastreabilidade bovina individual, por meio de brincagem e chipagem dos animais.

A SDA entende que esse processo deve ser compulsório, com finalidade de assegurar a sanidade do rebanho de 200 milhões de cabeças. A Confederação Nacional da Agricultura concorda com a obrigatoriedade, mas pede um tempo para a implementação. Esse tempo de adaptação reforça a necessidade de soluções de rastreabilidade no curto prazo, como a proposta CAR+GTA oferece, e que em seguida seria complementada pelo sistema individual.

A secretaria anunciou o estabelecimento de um comitê gestor com representantes do setor para que essa proposta evolua, identificando o que precisa para implementar, quais são os gargalos, como apoiar os produtores, criar incentivos e fiscalizar.
Segundo a Abiec, muito se fala sobre o alto custo, mas uma rastreabilidade individual básica exige do produtor pedir o brinco, instalar no boi e passar a informação para um sistema público. Os maiores custos estão em processos de certificação mais complexos, para acessar mercados internacionais.

Na Austrália e no Uruguai, que são países usados como exemplos, o custo da rastreabilidade individual praticamente se resume ao brinco. Além disso, não significa que os 200 milhões de cabeças que compõem o rebanho nacional tenham de ser identificados, e sim os animais que serão movimentados de uma propriedade a outra. Isso diminui o volume de brincos necessários no País. O custo deverá ser pago pelo produtor e deve-se pensar em formas de apoiar os pequenos, que provavelmente precisarão de uma assistência técnica inicial.

Em um modelo CAR+GTA ou AgroBrasil+Sustentável, a implantação da rastreabilidade individual deveria começar pelas propriedades localizadas nas áreas mais problemáticas, seja do ponto de vista socioambiental, seja sanitário, pois é capaz de especificar os animais que tiveram ou não contato com as áreas-problema, sem que seja necessário bloquear o fornecimento de todas as propriedades da área.

Em suma, o jogo está mudando no tabuleiro global. Ao criminalizar o comprador, a regulamentação europeia faz com que a pressão sobre os sistemas da cadeia de suprimentos seja muito maior. Empresas que lideram as cadeias de valor na pecuária brasileira são as mais aptas a se adaptar a essa nova realidade, pois têm acesso a instrumentos de rastreabilidade cada vez mais sofisticados. Isso, entretanto, não resolve o problema da pecuária brasileira como um todo, formada por pequenos e médios atores que precisam ser incluídos nesta nova ordem global do comércio.

A participação de todos é necessária para que o Brasil exerça sua capacidade de ofertar alimentos de baixo carbono, com inclusão social e proteção da biodiversidade, o que o colocará em protagonismo entre os players globais.

Mas essa ampla participação só pode ser alcançada por meio de políticas públicas de larga escala e longo prazo. Daí a importância de debater as propostas que estão na mesa e concretizar, o quanto antes, ações efetivamente estratégicas para o País.

*Autores
Amália Safatle é jornalista, editora e cofundadora da Página22
Roberto S. Waack é membro do Conselho de Administração da Marfrig
Paulo Pianez é diretor de Sustentabilidade e Comunicação da Marfrig
Izabella Teixeira é senior fellow do Instituto Arapyaú e do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri)
Leonel Almeida é gerente de pecuária sustentável da Marfrig

[Foto: Jose Fagundes/Pexels]

 

ROBERTO S. WAACK

É membro dos conselhos da Marfrig, Wise Plásticos, WWF Brasil, Instituto Ethos, Instituto Ipê e Instituto Arapyaú e visiting fellow do Hoffman Center da Chatham House (Londres). Tem uma longa carreira como executivo e como empreendedor, tendo atuado em empresas nas áreas farmacêutica, de biotecnologia e florestas. Foi CEO da Fundação Renova, entidade responsável pela reparação do desastre de Mariana (MG), co-fundador e CEO da Amata S.A. e CEO da Orsa Florestal, além de diretor da Boehringer Ingelheim e Vallée. S.A. É cofundador da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. Atuação profissional com concentração em governança, planejamento e gestão estratégica, gestão tecnológica&inovação e sustentabilidade. Formado em biologia e mestre em administração de empresas pela USP.

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