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Teremos um plano para a Amazônia?

por | 23/11/2020 | Amazônia, Governança

Artigo publicado originalmente na Página 22

Há algumas décadas estou envolvido com questões ambientais, a maior parte dela atuando no setor privado florestal, sempre fortemente engajado com a sociedade civil. Acredito profundamente na potência transformadora deste binômio. O bem estar humano e ambiental deve reconhecer a importância da sociedade civil organizada (sim, ONGs) no aprimoramento institucional, na geração de conhecimento, na educação das diversas matizes populacionais, nos alertas contundentes, na mediação de conflitos, na assistência social, enfim, de uma maneira geral, no tão necessário processo civilizatório.

Um documento vazado do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) traz um conceito extremamente preocupante e que deve ser levado a sério. No conjunto de ações estratégicas prioritárias, há a frase “criar marco regulatório para atuação das ONGs”. Não vou me ater a elementos jurídicos e nem à análise da Constituição, mas apenas reiterar o quão assustadora esta frase pode ser, apresentada em um momento em que o Brasil (e parte relevante do mundo) sinaliza movimentos que buscam controlar iniciativas democráticas.

Apesar dessa frase decidi enfrentar o desafio de fazer uma análise crítica do documento vazado e de pronunciamentos públicos do presidente do CNAL e vice-presidente da República, general Hamilton Mourão. Creio que o amplo debate sobre a Amazônia merece esse passo. Ousar, perante amigos de longa data e organizações de que participo a admitir que no conjunto de comunicados emanados da CNAL, há muitos elementos positivos. Ousar me desconectar de elementos políticos e ideológicos e focar na essência técnica do que está sendo ventilado. Ousar tecer comentários em cima de um conjunto de slides em construção, portanto compreensivelmente imperfeito e inacabado.

Nos preâmbulos dos documentos, a consideração da Amazônia como espaço vital para o mundo, com reconhecimento de seu capital natural, é um bom exemplo de abordagem que demanda aprofundada discussão com a sociedade brasileira e internacional. O texto não deixa claro qual a proposição, mas indica ter no conceito de soberania fundamento central.

Mas afinal, de que soberania estamos falando? Territorial, econômica, de conhecimento, de reconhecimento? – apenas para citar exemplos.

O texto levanta, de maneira dúbia, se “vale a pena enfrentar provocações das relações internacionais”. O que se pretende dizer com “provocações”? É evidente que a Amazônia interessa ao mundo. Como a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira tem dito, a “Amazônia coloca o Brasil no mundo, mas a Amazônia também tira o Brasil do mundo”. Questões ambientais, especialmente em dimensões amazônicas, legitimamente interessam a todos os habitantes do planeta. As culturais também, infelizmente em menor escala.

O Brasil tem o privilégio de contar com esse patrimônio ambiental e cultural e pode, se quiser e tiver a devida habilidade, colocar essa condição a serviço de boas relações internacionais e vantagens político-econômicas. Obviamente estamos na direção oposta. No entanto, as posições da CNAL acenam para alinhamento e melhor posicionamento do País no ambiente internacional. O documento propõe cuidar com maior atenção do papel do Brasil na Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e reativar o Fundo Amazônia, mas não trata com profundidade como o País fará para recuperar a posição de liderança que teve na agenda mundial envolvida em mudanças climáticas e biodiversidade.

Em alguns webinars, o vice-presidente tem sinalizado maior contundência e até propostas diretas para assumir papel de ponto focal em eventos, como a COP do Clima. O Brasil, por suas dimensões e diversidade, tem papel central na agenda mundial relacionada ao meio ambiente. Tem deixado espaços vazios e confusos, com claros impactos na agenda comercial e econômica nacional. Tratar da imagem do País é necessário, como abordado no documento da CNAL, mas de nada adiantará a emissão de selos verdes, expedições com diplomatas, peças de propaganda internacional, se os números de desmatamento, ausência ou confusão na diplomacia internacional permanecerem nos níveis atuais.

Os instrumentos de monitoramento do uso do solo, amplamente disponíveis para a sociedade mundial, não deixam espaços para narrativas incongruentes e explicações não convincentes. Não há nada a ganhar com o isolamento e, neste contexto, as intenções manifestadas pelo CNAL são positivas. A questão evidente é o quanto estão alinhadas com sinais emitidos por outras instâncias de governo.

A instituição do Conselho Nacional da Amazônia Legal, tendo como missão “coordenar ações setoriais voltadas à preservação, proteção e desenvolvimento sustentável”, se insere na evidente demanda por uma melhor governança na região. A existência de lacunas institucionais entre a federação, os estados e os municípios é evidente, assim como a sobreposição de funções entre diversos órgãos e instâncias executivas. O desmando impera, condição ideal para agentes oportunistas de todas as naturezas.

Articulação, gestão compartilhada e governança são condições necessárias e, dadas as características multifuncionais da região, deve ter caráter supraministerial. Obviamente cabe discussão se o locus administrativo permanente deve ser a Vice-Presidência da República, mas o empenho do vice-presidente em encarar este desafio tem sido evidente e útil para pavimentação futura desta importante função de governança.

Embora o processo indique e almeje ampla participação, é clara a concentração nas instâncias executivas do governo federal. Parece-me necessária a inclusão das contribuições dos estados amazônicos, de municípios com alta representação territorial e política, dos poderes legislativos, do Ministério Público, da academia, de organizações e movimentos da sociedade civil e, especialmente, dos habitantes locais. Iniciativas como o Consórcio de Governadores da Amazônia não são devidamente contempladas. Por outro lado, a menção à requalificação de repasses da União para estados e municípios é interessante e merece ser aprofundada, obviamente com a extensa participação destas instâncias administrativas.

De qualquer forma, é auspicioso que os resultados esperados incluam o cumprimento de metas globais comprometidas pelo País, o controle efetivo das ilegalidades que prosperam na região e a maior alocação de recursos.

A abordagem considera, corretamente, heterogeneidade no ambiente amazônico no que tange a vários aspectos, desde características da ocupação, uso do solo e elementos socioculturais. Não há como deixar de considerar, como em outras iniciativas em curso, que existem pelo menos quatro Amazônias: a preservada/conservada, a do Arco do Desmatamento, a das florestas convertidas e a urbana. No entanto, é no campo da diversidade de desafios que o documento e posicionamentos do CNAL precisam ter maior equilíbrio entre as agendas ambiental e social.

O reconhecimento da importância dos povos originais é absolutamente necessário, não só pelo respeito aos direitos, mas pela rara riqueza cultural. Há também que dedicar-se às populações de imigrantes oriundas de diversas partes do País, aos quilombolas, aos ribeirinhos. O texto faz algumas referências à inclusão social e cidadania. Em alguns momentos trata de redução da pobreza, da atenção às comunidades desassistidas, do acesso à bens e serviços, mas não deixa transparecer a devida contundência necessária nessas frentes.

Um dos mais relevantes debates na sociedade se refere ao termo desenvolvimento sustentável. Afinal, do que se trata esta definição? Em poucos lugares do planeta há capital natural tão rico como no Brasil. Os modelos tradicionais de desenvolvimento, ainda que com o adjetivo sustentável (também bastante indefinido), não se aplicam. Em geral foram desenvolvidos no Hemisfério Norte, em condições históricas diversas. Poucas são as organizações dedicadas ao estudo de modelos alternativos, que se assentem nas oportunidades que o equilíbrio entre produção, restauração e conservação se deem de maneira efetiva. Usar o termo desenvolvimento sustentável sem as devidas qualificações é temeroso.

Por exemplo, não há dúvidas de que a melhora da infraestrutura e das comunicações é necessária, como apontado pelo CNAL, mas um debate profundo sobre modelos de modais deve ser realizado. As consequências das escolhas são drásticas e transformadoras. Qualquer estratégia para a Amazônia precisa ser explícita neste campo, considerando as diferentes vozes locais, suas necessidades básicas, seus sonhos, e também os aprendizados com as grandes obras já realizadas na região.

O fomento ao ambiente de negócios, como abordado, é necessário, assim como é altamente positivo o reconhecimento de que a bioeconomia é não só vocação histórica, mas representa alto potencial. O documento não deixa claro o escopo desta recomendação, mas o uso de colocações explícitas da importância da bioeconomia 4.0, incentivo à cooperativas extrativistas, manejo florestal, recomposição de florestas, recomposição de áreas degradadas, piscicultura, agronegócio sustentável, rastreabilidade e agricultura de baixo carbono indicam o entendimento de uma visão, no meu entender correta, do conceito de bioeconomia. Abre perspectivas de cooperação internacional neste campo, com possibilidades de que a agenda da bioeconomia contemple diferenciadamente as distintas situações de ocupação da terra na região.

A bioeconomia da floresta conservada é naturalmente mais biodiversa, menos intensiva em capital, mais inclusiva, enquanto a bioeconomia das áreas convertidas é de maior escala, é menos diversa, mais concentrada, mais intensiva em capital, mas igualmente relevante. A bioeconomia florestal, ligando os dois grupos, pode ter um papel central na zona de transição entre as regiões antropizadas e as preservadas, com um contínuo de tipologias de atividades florestais que vão da conservação, manejo e restauração ao plantio de espécies exóticas em modelos de monocultura.

Mais uma vez, a questão central é como essas atividades podem coexistir em mosaicos com distintos tipos florestais compondo a paisagem. O grau de profundidade dos documentos não permite estas inferências, mas a menção das diversas tipologias é uma boa notícia.

Intimamente relacionada à bioeconomia, há apontamentos sobre um plano de Ciência, Tecnologia e Inovação para a região, com ideias há muito defendidas pela sociedade civil e academia de programas para atração de cientistas, implementação de laboratórios satélites, ações integradas das diversas áreas da ciência aplicáveis à região. Ainda, sugere a implementação de incentivos fiscais para investimentos em bioeconomia e à melhoria das condições de acesso a fontes de investimentos internacionais.

A relação da agenda climática com a bioeconomia é evidente. Neste campo é apresentado um conjunto de medidas relacionadas ao Pagamento por Serviços Ambientais e mecanismos de mercado de carbono. É necessário aprofundamento sobre esses mecanismos, especialmente para que o País possa ter papel de protagonista na COP 26, quando o Artigo 6 do Acordo de Paris poderá ser discutido e finalmente formatado.

Da mesma forma, a agenda climática está fortemente relacionada às menções a incentivos à restauração de pastagens, de florestas, à resolução de passivos ambientais e relacionados ao Código Florestal – o Cadastro Ambiental Rural (CAR) aparece como instrumento importante. São indicativos do reconhecimento do potencial da chamada economia restaurativa, em voga nas discussões recentes de atores do mercado financeiro. Há reconhecimento de oportunidades relativas às concessões de terras públicas ao setor privado, aos chamados green bonds e, especial atenção, aos mecanismos fiscais e financeiros, tendo a preservação ambiental como critério de repasse de recursos da União. Esta pauta vem sendo demandada por especialistas há muito tempo.

Há boa ênfase na urgente necessidade de ordenamento territorial e regularização fundiária. O tema tem sido discutido pelo Congresso e pela sociedade, com reconhecimento convergente da sua importância, mas com visões divergentes relacionadas ao uso de mecanismos legais vigentes – Programa Terra Legal, por exemplo. Embora faça menção à necessidade urgente de que o tema seja tratado, os documentos e posições do CNAL não são claros quanto a elementos críticos, como tratamento diferenciado para pequenas propriedades, em contraposição às terras com fortes suspeitas de grilagem.

A manifestação de que é preciso expropriar terras acometidas de crimes ambientais decorrentes de grilagem em terras públicas, correta no entender de vários segmentos da sociedade, incluindo fatia do agronegócio, tem sido contraposta com veemência pela Presidência da República. Fala-se da recomposição do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e até da criação de uma Agência Nacional de Terras, indicando que o assunto merece a devida atenção. A forma de lidar com tema que interfere interesses oligárquicos e políticos permanece em aberto.

Por fim, provavelmente a mais importante frente: o combate à ilegalidade. O documento trata da necessidade de se estabelecer metas factíveis para o controle do desmatamento, mas não sinaliza quais são.

Reconhece que os órgãos de comando e controle precisam ser reforçados e que políticas de governos anteriores, como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), são relevantes. Afirma a importância de sistemas de monitoramento aéreo espacial, mas não reconhece o quanto instrumentos como MapBiomas e os atualmente utilizados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe) são fundamentais e deveriam ser incorporados aos mecanismos propostos, não só pela sua qualidade mas pela necessária transparência que permite às sociedades nacional e internacional monitorar o que acontece na Amazônia. Essas iniciativas abertas de monitoramento são inevitáveis, vieram para ficar e serão constantemente aprimoradas. Fundamentam-se em elementos técnicos de alta qualidade e de fronteira (portanto abertas a boas discussões metodológicas).

O combate ao desmatamento desenfreado em curso, às queimadas, à grilagem de terras, ao garimpo e à mineração ilegal, alia-se ao necessário controle das fronteiras, entre outros motivos pela ampla expansão do narcotráfico na região. Essas frentes têm sido amplamente tratadas pelo CNAL, incluindo propostas para reforço orçamentário de municípios para combate ao desmatamento e às queimadas e a reversão de multas ambientais para os municípios onde os danos ocorreram (medida que suscita boas discussões). Abordam a necessidade de intensificação de sistemas de inteligência, de estudos sobre a sistemática de crimes ambientais e integração de órgãos de combate a ilícitos. Como já mencionado, também tratam da ampliação de punições.

Não faz sentido tratar de soberania ao mesmo tempo que persistem ilegalidades e o pleno convívio político com ações oportunistas que, no fim, resultam na acumulação de riquezas para poucos grupos, ampla distribuição de pobreza, danos ambientais e abandono.

O documento menciona a necessidade de políticas públicas para áreas como saúde (tem campo específico para a Covid-19), saneamento básico, educação e assistência social, mas, como é amplamente sabido, sem o efetivo cumprimento das instituições e leis, não há prosperidade possível. O reconhecimento desta triste situação e a prioridade dada ao tema deve ser aplaudida, mas é preciso maior clareza sobre o papel das Forças Armadas como proxy para a presença do Estado.

Não há como imaginar que a implementação de um rol tão denso de medidas de natureza legais, policiais, fiscais, culturais, sociais, econômicas, comerciais, diplomáticas e de comunicação – institucionais no seu sentido mais amplo –, seja possível sem a ampla participação livre, democrática e transparente de todos os atores da sociedade, nacionais e internacionais. Afinal, a verdadeira soberania se dá pelo reconhecimento dos brasileiros e habitantes do planeta de que sabemos e podemos cuidar deste patrimônio como ninguém. Mais do que isso, que a sociedade brasileira, especialmente a local, atue amplamente para construir uma visão e participe de maneira efetiva da sua execução.

[Foto: Ag. Pará/Fotos Públicas]

 

ROBERTO S. WAACK

É membro dos conselhos da Marfrig, Wise Plásticos, WWF Brasil, Instituto Ethos, Instituto Ipê e Instituto Arapyaú e visiting fellow do Hoffman Center da Chatham House (Londres). Tem uma longa carreira como executivo e como empreendedor, tendo atuado em empresas nas áreas farmacêutica, de biotecnologia e florestas. Foi CEO da Fundação Renova, entidade responsável pela reparação do desastre de Mariana (MG), co-fundador e CEO da Amata S.A. e CEO da Orsa Florestal, além de diretor da Boehringer Ingelheim e Vallée. S.A. É cofundador da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. Atuação profissional com concentração em governança, planejamento e gestão estratégica, gestão tecnológica&inovação e sustentabilidade. Formado em biologia e mestre em administração de empresas pela USP.

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