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O agronegócio, o capital natural e as regras do jogo climático

por | 24/05/2024 | Mudanças climáticas, Sustentabilidade

Artigo publicado originalmente no Estadão, em 23/05/2024

Por Roberto Waack*

Inúmeros são os artigos e manifestações alertando sobre a ampla diversidade e heterogeneidade do agronegócio brasileiro. No entanto, considerando sua intrínseca relação com a terra e, portanto, com a natureza, parte relevante do agronegócio separou artificialmente a atividade da conservação daquela destinada à produção, dois componentes indissociáveis. Essa ampla relação passa pelo solo, pela dependência dos recursos hídricos, pela coabitação com florestas e vegetações nativas, pela interação com habitantes originais e imigrantes, suas culturas, seus sonhos, sua força de trabalho. Muito se fala do amplo espectro dessa interação que, por um lado, tem atores da pior estirpe, criminosos ambientais, responsáveis por grande parte do desmatamento e degradação ambiental, e por outro lado também inclui a mais moderna, sofisticada, competitiva e sustentável bioeconomia do planeta.

Um país que conta com capacidade competitiva e grande relevância na segurança alimentar do planeta, com organizações de referência global e solidez acadêmica em ciência e tecnologia, não pode conviver com a rasa desconstrução do conceito de agronegócio que experimenta atualmente. Essa desconstrução denota, entre outros motivos, componentes políticos em grande parte promovidos por atores da própria indústria. Mas denota também, em parte, um ativismo ambientalista e ideológico que não aceita reconhecer a diversidade e complexidade socioeconômica e ambiental desse setor.

Na década de 1950, em Harvard, o professor Ray Goldberg cerzia o conceito de sistemas agroindustriais. Neste mês de maio, foi celebrada, de forma discreta, a contribuição dos professores Decio Zylbersztajn e Elizabeth Farina, da FEA-USP, ao agronegócio brasileiro, tendo como um dos pilares os fundamentos desenvolvidos naquela universidade americana. O Programa PENSA contribuiu com impressionante e generosa formação de novas organizações e profissionais envolvidos com o tema em todo o Brasil. Não cabe aqui nomear suas lideranças (literalmente não caberiam neste espaço), amplamente reconhecidas no Brasil e no exterior: são ministros, executivos públicos e de empresas, lideranças acadêmicas e profissionais de comunicação.

No Programa PENSA, o conceito de sistemas agroindustriais do professor Ray Goldberg foi poderosamente combinado com os fundamentos teóricos de economistas como Ronald Coase, Douglas North e Oliver Williamson. De forma inédita, se estabeleceram diálogos entre empresas, cooperativas e academia, tratando de assuntos que fazem parte do dia a dia do agronegócio, como contratos da indústria processadora de alimentos com os diferentes elos das cadeias de suprimento, com o mercado e com seus consumidores finais. Os estudos e debates deram importante contribuição para que novas regras do jogo entre os diversos atores se estabelecessem, envolvendo governos e organizações setoriais, desenvolvendo estratégias, novas formas de governança, arranjos cooperativos e diferentes modelos de integração vertical.

Na academia, essas frentes se desenvolveram com fundamentos conceituais com nomes e estruturas sofisticadas, como organização industrial, poder de mercado, concorrência, competitividade. Concomitantemente, acadêmicos que desenvolveram esses fundamentos teóricos foram sendo agraciados com prêmios Nobel, como Douglas North, Oliver Williamson e Elinor Ostrom. Boa parte dos integrantes do PENSA interagiram com esses nomes na intensa inserção internacional do Programa. Alguns deles até circulavam pela FEA-USP, já como sumidades reconhecidas com a máxima premiação econômica, como convidados do PENSA. As regras do jogo ou, expressando de modo mais elegante, o ambiente institucional, estava sendo forjado em arranjos formais e tácitos entre os diversos elos do sistema agroindustrial. Nos últimos 30 anos, o agronegócio brasileiro tornou-se um dos mais sofisticados do mundo, e boa parte desse salto deu-se devido à alta qualificação de seus profissionais.

O mundo vivencia várias crises concomitantes. O sistema multilateral está em frangalhos (ONU, G-7 e G-20, BRICS+ e outros), com imensas dificuldades para superar o aprisionamento provocado por uma sequência interminável de eventos e declarações com baixíssimo impacto prático. Enquanto isso, a crise climática tem provocado transições relevantes no campo energético e alimentar. As reações da natureza se evidenciam na forma de sucessivos desastres. As relações entre conservação e produção tornam-se gritantes.

“Na relação humana com o meio ambiente não existe futuro individual, nem para pessoas, nem para nações. O nosso futuro é comum. Precisamos compartilhá-lo e desenhá-lo juntos.” Esta frase foi dita em 1972 pelo então primeiro-ministro da Suécia, Olof Palme, em Estocolmo, na primeira Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente (COP). Em 2022, na comemoração dos 50 anos dessa conferência, Carlos Gustavo, rei da Suécia, levou sua neta para a abertura do evento. Em seu discurso, contou que estava com seu avô, Gustavo Adolfo, na conferência em que Olof Palme cunhou a frase acima. O atual monarca relatou pacientemente que nos últimos 50 anos o mundo aprendeu muito sobre a provocação do primeiro-ministro.

A ciência ofereceu informações cruciais para a conscientização do desastre climático que já se avizinhava. A ONU traçou metas e indicadores para o desenvolvimento sustentável. Tecnologias energéticas se consolidaram e inovações na produção agrícola surgiram. Quase 30 Conferências do Clima foram realizadas, com intermináveis negociações (e frustrações) sobre fundos financeiros e mecanismos de mercado. Rei Gustavo, o Carlos, se lembrou saudosamente de seu avô Gustavo, o Adolfo, ressaltando que a humanidade sabe o que precisa ser feito para endereçar a provocação de Olof Palme. Não tem desculpas para não avançar. Mas não teve e não tem liderança – esta é a mais dolorosa constatação – nem no multilateralismo, nem nos governos, para implementar essas mudanças institucionais. O desenvolvimento das novas regras do jogo, as instituições, formais e tácitas, estão nas mãos do setor privado, alertou o neto de Gustavo Adolfo perante sua neta, a princesa Estelle.

No Brasil, o agronegócio mostra esse vigor. Novos modelos de negócio surgem aqui e ali. Empresas voltadas para a produção de motores, como a Tupy, inovam no campo dos biocombustíveis com arranjos antes inimagináveis com o agronegócio. Companhias icônicas de tecnologia, como a Microsoft, estabelecem contratos com empresas dedicadas à restauração florestal, como a re.green. Grandes corporações produtoras de alimentos, como a Marfrig, redesenham suas estratégias de adição de valor, marcas e rastreabilidade total. Fundos como o Mubadala anunciam investimentos bilionários em combustíveis de aviação derivados da produção da palmeira nativa macaúba, em projeto da Acelen. Indústrias de insumos agrícolas, como a Bayer, conduzem programas envolvendo centenas de milhares de hectares voltados para agricultura regenerativa. Startups como a Agrorobótica desenvolvem novas formas de negócios voltados para mensuração do carbono no solo, para geração de crédito de carbono.

Em todos os exemplos há um elemento central: soluções derivadas da natureza e a indissociável combinação da produção com a conservação. No entanto, resta o desafio de atribuição do devido valor econômico a esse capital natural.

O Brasil conta com uma das mais sofisticadas legislações voltadas para o uso da terra no planeta. O Código Florestal, fruto de uma poderosa articulação política, define que toda propriedade rural deve respeitar áreas de preservação permanente e reservas florestais. Por este motivo, o agronegócio brasileiro é certamente um dos que melhor combina o binômio conservação-produção. Pode-se dizer que esse arranjo institucional foi visionário, num mundo que valoriza cada vez mais o capital natural. No entanto, ele permanece com valor econômico invisível.

O País tem condições únicas para abraçar o desenvolvimento institucional para a devida valoração econômica do capital natural. O agronegócio é a indústria onde, naturalmente (não se trata de trocadilho), este debate e a formatação de regras pode ocorrer. O País conta com imenso capital intelectual da academia, como citado. É internacionalmente bem-sucedido e reconhecido no campo empresarial. Detém gigantesco maciço florestal tropical, biodiversidade e recursos hídricos. É vital na segurança alimentar do mundo.

Entre os elementos desse quebra-cabeça estão as novas regras de relatórios contábeis. Seguindo as orientações do IFRS (International Financial Reporting Standards), organização que define regras contábeis no mundo todo, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) decidiu que nos dois próximos anos incorporará elementos relacionados a clima e natureza (capital natural) nos chamados relatos integrados. Em 2027 esta abordagem será obrigatória. As regras do jogo contábil estão mudando e certamente os sistemas agroindustriais poderão dar a devida visibilidade ao capital natural do qual dependem e com o qual se relacionam produtivamente.

Os sistemas financeiros são pressionados a acolherem esse capital na forma de ativos, com valores tangíveis e integrados aos seus negócios. No entanto, a não aceitação por parte das instituições financeiras de ativos naturais como garantias, por exemplo, é contraditória em um país que detém esse imenso patrimônio e que se propõe a manter e incentivar o aumento desse capital. Novos arranjos envolvendo fundos garantidores e modelos de financiamento associados à entrega de valor de capital natural – como no caso de restauração florestal – precisam ser implementados. Sistemas de seguro para ativos florestais precisam ser aprimorados. Instrumentos como Plano Safra e componentes fiscais e tributários precisam incorporar essas tendências, com urgência.

No campo dos mercados, a ordenação e os modelos de governança relacionados a derivativos do capital natural – como carbono, recursos hídricos e até a biodiversidade – são ainda bastante nebulosos. Os sistemas multilaterais como as COPs do Clima e da Biodiversidade encontram dificuldades em definir modelos de transações, mensurações, contabilidade, além de modelos de distribuição de resultados e benefícios. O agronegócio é central nesse campo, sendo responsabilizado, direta ou indiretamente, pelas emissões de gases de efeito estufa ligadas ao uso da terra – quase metade do total no Brasil e um quarto no mundo.

Estando diretamente associados a essa dimensão climática, os sistemas de rastreabilidade passaram a ser barreiras não tarifárias e a serem integrados a acordos bi e multilaterais. O agronegócio brasileiro tem imensa oportunidade de alargar o espectro de mecanismos como o EUDR (Regulamento Europeu para Desmatamento) para “pegada” integral de carbono. Não faz sentido uma regulação restrita ao desmatamento, uma vez que o argumento assenta sobre emissões de carbono, sem que a rastreabilidade integral de emissões de gases de efeito estufa em todas as cadeias produtivas seja levada em conta. Considerando os modelos de produção nacionais, incluindo a matriz energética e o Código Florestal, o agronegócio brasileiro certamente estará entre os que menos emitem gases de efeito estufa. Se o carbono passar efetivamente a ser chave no comércio internacional de commodities, o agronegócio brasileiro precisa estar na linha de frente desse debate, pautando agendas que são favoráveis ao nosso País.

As partes desse jogo incluem também novas fronteiras nas relações com a sociedade, com as populações que vivem integradas a esse mosaico. São novas formas de contratos sociais, inseridos numa abordagem integrada da paisagem, incluindo a história, a cultura, os sonhos, as ambições e, cada vez mais, os desafios climáticos a que essas populações e unidades produtivas estão expostas.

É evidente que a determinação do setor em se afastar do desmatamento e da degradação precisa avançar. É o componente tácito do ambiente institucional, o que vai além das leis formais. Evoca elementos culturais, ambições civilizatórias e, com isso, uma forte reação à desconstrução da imagem do agronegócio nacional. Ao mesmo tempo, sua dimensão formal – as regras escritas em políticas públicas – precisam ser efetivamente cumpridas. As ações de comando e controle do desmatamento e demais ilegalidades (grilagem de terras, garimpo ilegal, tráfico de animais e outras), assim como o efetivo cumprimento do Código Florestal, dependem mais do que nunca da liderança desse agronegócio sofisticado, pujante e competitivo que o Brasil tem.

Por esses e outros motivos, o agronegócio brasileiro não pode ser tratado – e em alguns casos se apresentar – como uma mera opção ideológica. Iniciativas empresariais associadas ao dinamismo acadêmico e às condições ambientais, sociais e econômicas do nosso País evidenciam que a bola está, mais do que nunca, nas mãos do agronegócio brasileiro, para construir as regras de um novo jogo, em que o valor do capital natural seja evidenciado, monetizado e devidamente institucionalizado

*Roberto Waack é biólogo, presidente do Conselho do Instituto Arapyaú e cofundador da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.

[Foto: kaosnoff/Pixabay]

 

ROBERTO S. WAACK

É membro dos conselhos da Marfrig, Wise Plásticos, WWF Brasil, Instituto Ethos, Instituto Ipê e Instituto Arapyaú e visiting fellow do Hoffman Center da Chatham House (Londres). Tem uma longa carreira como executivo e como empreendedor, tendo atuado em empresas nas áreas farmacêutica, de biotecnologia e florestas. Foi CEO da Fundação Renova, entidade responsável pela reparação do desastre de Mariana (MG), co-fundador e CEO da Amata S.A. e CEO da Orsa Florestal, além de diretor da Boehringer Ingelheim e Vallée. S.A. É cofundador da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. Atuação profissional com concentração em governança, planejamento e gestão estratégica, gestão tecnológica&inovação e sustentabilidade. Formado em biologia e mestre em administração de empresas pela USP.

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