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Baixas emissões de carbono no uso da terra (parte 1)

por | 24/03/2017 | Mudanças climáticas, Sustentabilidade

Publicado originalmente no site da Fundação Renova.

INTRODUÇÃO

É possível produzir e conservar, deixando para trás o falso dilema de produzir ou conservar. Dificilmente outros países conseguirão competir com o Brasil nesse campo. O sinal de que o planeta caminhará para a economia de baixo carbono está dado. Se bem conduzido, o Brasil poderá ter uma posição competitiva única e extremamente favorável na produção de commodities relacionadas ao uso da terra, conseguindo ao mesmo tempo valorizar e conservar seu imenso capital natural.

Novembro de 2014. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) apresentava, em sua quadragésima sessão, em Copenhague, os elementos para mais um relato-síntese, publicado no início de 2015. Ele explicava que o planeta aquece em decorrência de emissões de carbono e que há uma forte correlação entre razões naturais e antropogênicas. Apresentava cenários de evolução de tendências, riscos, incertezas, impactos, alternativas para adaptação, mitigação, desenvolvimento sustentável, vulnerabilidade de regiões e ecossistemas, convivência com eventos extremos, métricas, modelagens, alternativas de remoção de carbono da atmosfera, responsabilidades e políticas subnacionais, nacionais, bilaterais, multinacionais, inovação, investimentos, trade-offs e sinergias. Abordava, ainda, efeitos na criosfera, atmosfera, oceanos, solo, água doce, florestas, campo e cidades.

A chamada biogeoquímica política preparava o terreno para a COP-21, a Conferência do Clima que se realizaria em Paris em dezembro de 2015.

18 de dezembro de 2014. Um grupo de pessoas, representando organizações do terceiro setor, empresas, associações de classe e, acima de tudo, a si mesmas, se reúne em um hotel em São Paulo. Nascia a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.

Alguns (poucos) números

Cerca de 50 bilhões de toneladas de CO2 equivalente (CO2e) são emitidas no planeta. Segundo o IPCC, dois setores econômicos são os principais responsáveis pelas emissões desses gases de efeito estufa (GEE): a produção de eletricidade e de aquecimento (29%) e a mudança no uso da terra (24%).

Esse último grupo, definido pela sigla AFOLU, em inglês, inclui agricultura, florestas e outros fatores que alteram o uso da terra. Seguem, em ordem decrescente, indústria (21%), transporte (14%) e outros setores, como construção civil e infraestrutura.

Um olhar mais atento revela um quadro bastante grave das emissões decorrentes da produção e da distribuição de alimentos em geral. Esse resultado aparece quando ao grupo AFOLU somam-se as emissões decorrentes da industrialização de alimentos e fibras, bem como da logística a ela associada.

Segundo o Sistema de Estimativa de Emissão de Gases do Efeito Estufa (SEEG), em 2014, cerca de 2/3 das emissões de carbono no Brasil (1,5 bilhão de toneladas de CO2e) estavam associadas à agropecuária ou à mudança no uso da terra. O país é um dos campeões mundiais da redução de emissões: em 2004, chegou a emitir quase o dobro do total de 2014. É mundialmente festejado pela expressiva redução do desmatamento, que em 2004, no auge, chegou a emitir 2 bilhões de toneladas de CO2e, um volume bastante expressivo. No entanto, apesar do inegável sucesso do monitoramento e do controle do desmatamento, o Brasil continua com outro título bem menos louvável: o de campeão mundial da supressão de florestas. Essa atividade ainda representa 1/3 das emissões nacionais.

Interdependência

Pertenço a uma geração perdida, e só me encontro quando convivo em grupo com a solidão de meus semelhantes”. Umberto Eco

O mundo é cada vez mais complexo, turbulento e globalizado, social, econômica e ambientalmente. Os efeitos das ações humanas disseminam-se pelo planeta em tempo real. “A maneira como vamos trabalhar na Suécia influencia o padrão de chuvas para um pequeno produtor no sul da África; e a forma como um pescador na Tailândia atua nos mangues afeta o padrão climático na Inglaterra”, comenta Johan Rockstrom, da Universidade de Estocolmo.

O uso da terra tem uma característica única no universo das emissões de gases-estufa. Seu potencial de mitigação decorre de duas alternativas: a redução de emissões decorrente de gestão da terra e da produção de commodities agrícolas e florestais, simultaneamente às alternativas de remoção de carbono decorrentes do metabolismo vegetal.

O uso da terra oferece a maior parte dos alimentos para a população humana, fornece fibras para os mais diversos usos, provê energia por meio de diferentes alternativas. Acolhe grande parte da população mundial. Ao mesmo tempo, presta múltiplos serviços ecossistêmicos, além do referido efeito na qualidade atmosférica, na preservação de mananciais hídricos e na biodiversidade. A característica singular do uso da terra a expôs, quase literalmente, a uma inusitada batalha campal.

De um lado, a ocupação para produzir alimentos e outras commodities, o que historicamente se relaciona com a emissão de gases-estufa. De outro, a prestação dos serviços ambientais, que se relaciona com a remoção desses gases. Não por acaso, as principais iniciativas de governança multistakeholder no planeta foram incubadas nesse embate e prosperam nele. Sistemas de certificação como Forest Stewardship Council (FSC) e roundtables para soja e palma floresceram nesse ambiente.

No Brasil, a ampla discussão sobre o Código Florestal vem da mesma matriz. Os agentes que atuam no agronegócio, nas florestas, na conservação da natureza e, especialmente, no uso social da terra convivem há um bom tempo com temas comuns – todos, de certa forma, com agendas próprias e independentes. Décadas de convívio solitário em bares isolados. Mas eis que a fragmentação, o desencanto e a ressaca do embate do Código Florestal se aliam à perspectiva de uma nova ordem institucional, decorrente das evidências das mudanças climáticas, curvando-se a sinais políticos e socioeconômicos relevantes. São eles:

► saber, com precisão, como a terra será utilizada é uma tendência claríssima no planeta;
► a sociedade acompanha esse uso com instrumentos cada vez mais sofisticados, como satélites e sistemas de geomonitoramento;
► a transparência veio para ficar; a sociedade, organizada ou não, tem um papel cada vez mais preponderante na outorga de licenças para operar;
► o uso de recursos naturais, especialmente terra e água, deverá ser fortemente otimizado;
► é inexorável integrar o uso desses recursos, saindo de dentro da porteira das propriedades para uma visão mais integrada com o entorno;
► o que está desperdiçado e subutilizado deverá ser restaurado de alguma forma; os fins dessas restaurações podem ser bastante diversos;
► a produção de bens e serviços deverá gerar cada vez menos externalidades;
► a sociedade vai encontrar formas de remunerar externalidades positivas, favorecendo modos de produzir menos impactantes.

Transparência, racionalidade e maior eficiência no uso de recursos naturais, restauração do capital natural, reconhecimento e remuneração por serviços ambientais, punição social e econômica pela produção de externalidades negativas são alguns dos principais elementos de contorno do uso da terra. O conceito de gestão ampliada da paisagem consolida-se aos poucos. Evidencia-se que, nesse campo, interdependência é o nome do jogo. Os solitários passam a frequentar o mesmo bar. Paris (COP-21) não deu o sinal. Paris leu o sinal dado pela crescente massa crítica dos solitários. Talvez já não tão solitários por se encontrarem num mesmo bar, cientes de que se estabelece uma nova forma de lidar com o uso da terra, estimulada pelo universo das mudanças climáticas, mas não limitada a ele.

Clique aqui e confira a segunda parte do artigo.

[Foto: Gustavo Baxter/Nitro]

 

ROBERTO S. WAACK

É membro dos conselhos da Marfrig, Wise Plásticos, WWF Brasil, Instituto Ethos, Instituto Ipê e Instituto Arapyaú e visiting fellow do Hoffman Center da Chatham House (Londres). Tem uma longa carreira como executivo e como empreendedor, tendo atuado em empresas nas áreas farmacêutica, de biotecnologia e florestas. Foi CEO da Fundação Renova, entidade responsável pela reparação do desastre de Mariana (MG), co-fundador e CEO da Amata S.A. e CEO da Orsa Florestal, além de diretor da Boehringer Ingelheim e Vallée. S.A. É cofundador da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. Atuação profissional com concentração em governança, planejamento e gestão estratégica, gestão tecnológica&inovação e sustentabilidade. Formado em biologia e mestre em administração de empresas pela USP.

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