Artigo originalmente publicado na revista Página 22
Por Roberto S. Waack e Fernanda Rennó*
Na maior parte dos casos de grandes desastres agudos, como desabamentos decorrentes de chuvas, incêndios devastadores, naufrágios de embarcações irregulares e rompimentos de barragens, há quase sempre um desastre crônico e histórico por trás. No caso da Covid-19 não é diferente. Há tempos se comenta sobre o risco de uma pandemia. Muitos apontam desequilíbrios ambientais como possíveis causadores de eventos como o que o mundo vive hoje.
O enfoque no momento agudo é compreensível, com recorrentes manchetes dramáticas, movimentações heroicas de governos e manifestações de indignação da sociedade. A imprensa exerce um papel essencial de serviço público ao reportar aquilo que é mais factual, especialmente na cobertura em tempo real e diária. No entanto, pouca ênfase é dada ao contexto que propiciou o evento e as ações da reparação.
Desastres agudos são pontas de icebergs. A solução plena dessas tragédias não está na reparação em si, mas no entendimento do contexto – a base dessas montanhas flutuantes – com a formulação de um conjunto de ações estruturantes, tidas como legados desses eventos. Assim como a profundidade de icebergs é invisível, as causas e consequências de desastres são, em geral, de difícil compreensão.
O encaminhamento de soluções eficazes depende do entendimento dos desastres crônicos, em geral associados à ineficácia de políticas públicas ou a modelos de negócios que já não se sustentam. A dramaticidade dos desastres agudos oblitera e acaba por dissipar o entendimento das situações crônicas sobre as quais se assentam.
Grande parte das tragédias está relacionada à progressiva ocupação de áreas, territórios ou regiões por diferentes atividades humanas. São alterações de paisagens, combinações sutis de desequilíbrios, muitas vezes com efeitos não intencionais, imperceptíveis. O entendimento desse processo não é trivial. Como sapos que morrem cozidos em fogo brando, a percepção de lentos desequilíbrios não ocorre.
Desastres agudos deveriam ser mais bem compreendidos para alimentar a formulação de ações técnicas, sociais, econômicas e políticas, voltadas para ajustes na forma como interagimos com a natureza, territórios são ocupados e atividades produtivas são realizadas. O enfoque em desastres crônicos deveria ser tão contundente quanto o destinado à reparação de tragédias agudas.
Atividades humanas em geral causam externalidades. São efeitos desviados do objetivo principal desses empreendimentos. São exemplos as ocupações desordenadas, as conversões do uso do solo, as explorações desmedidas e inconsequentes de ativos naturais (Covid-19 parece ser um angustiante caso), o destino inadequado de resíduos (incluindo esgoto e sólidos), o mau uso de compostos químicos. A quem cabe a regulação dessas atividades e o devido monitoramento de suas consequências? A organizações multilaterais e governos, certamente, mas não só a eles.
Pavan Sukhdev, uma das principais lideranças globais da chamada nova economia, atualmente presidente do conselho mundial da organização não governamental WWF, costuma dizer que a sociedade se move por três “Ds”: desastres, decretos e desenhos estratégicos.
Os desastres são, infelizmente, os fatores motivadores de mudanças mais contundentes, mas desenhar formas de atuação que minimizem externalidades negativas deveria ser a maneira mais eficiente de lidar com elas. Não é assim. A natureza humana parece ser avessa a mudanças e saltos para novos ambientes, como o sapo na panela com água fervente. Daí a importância de decretos, regulamentações, leis e regras, atribuição típica de governos. Claramente não são suficientes e os desastres continuam a ocorrer. No mundo corporativo, afetam drasticamente reputações, acesso a mercados, a capital e consequentemente perda de valor econômico.
A crise que se apresenta suscita um quarto “D”, o da dúvida, a base da ciência, da investigação, da busca pelos fundamentos do que nos cerca. Não há como negar a importância da governança nesses processos. No entanto, os modelos de governança, públicos e privados, parecem estar longe de dominar o repertório para entendimento amplo de externalidades e suas relações com desequilíbrios crônicos.
O entendimento de desequilíbrios crônicos deve ir bem além da aplicação das abordagens técnicas – necessárias, mas não suficientes. A relação das pessoas com o ambiente em que vivem, suas histórias, memórias, sentimentos, sonhos e desejos é absolutamente crítica. Existe uma grande lacuna entre os efeitos negativos das externalidades e a percepção das comunidades sobre elas. Desequilíbrios crônicos passam a formatar memórias coletivas como se fossem a normalidade. Práticas sabidamente de risco se incorporam ao dia a dia.
A consequência é sabida: casas são arrastadas por enchentes, barragens se rompem, incêndios proliferam, substâncias químicas se alastram, recursos naturais se esgotam, doenças se alastram. Quando ocorrem, mudam o contexto histórico, mas na maioria dos casos não alteram significativamente os rumos dos desequilíbrios crônicos. É preciso compreender e, coletivamente, alterar esses rumos indo além do conhecimento técnico-científico. Memórias, sentimentos e emoções, razões imperscrutáveis, precisam ser compreendidas para se lidar com a cronicidade de desequilíbrios.
“No campo das diversas atividades humanas, quem almeja risco zero não sabe o que é risco ou não conhece o que é zero”. Essa frase ouvida em um evento sobre desastres é emblemática. Não há risco zero. O que se espera é que os riscos sejam claramente identificados e ações para que sejam evitados, mitigados ou compensados se estruturem. Esta abordagem deveria suscitar mudanças em políticas públicas e modelos de negócios.
A inclusão da gestão de externalidades nas rotinas de gestores públicos e de conselhos de administração é crucial. Um olhar mais atento e arejado, da sociedade como um todo, aos desastres crônicos que nos cercam é a única alternativa para reduzir a ocorrência de desastres agudos.
*Roberto S. Waack é ex-CEO Fundação Renova e acionista fundador da Amata S.A. **Fernanda Rennó é PhD em Planejamento Territorial pela Université de Toulouse, França
[Foto: Ulrike Langner/Unsplash]