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Restauração florestal, mudança de escala à vista?

por | 18/05/2020 | Gestão tecnológica e inovação

Artigo publicado originalmente na revista Página 22.

A discussão sobre a economia da restauração florestal com plantios aparece ciclicamente com questionamentos sobre a razão de existir como atividade empresarial. Na prática, tem sido predominantemente objeto de estudos, debates e algumas iniciativas em escala piloto. Teria potencial para mudança de escala e envolver organizações que efetivamente podem transformar esse jogo? Parece haver uma combinação de demanda por restauração para resolver passivos ambientais, descarbonização de commodities (mineração, grãos, pecuária), endereçamento de danos reputacionais que afetam negociações internacionais e interesse de organizações financeiras.

O desenvolvimento de novas aplicações de fibras florestais se expande para segmentos como informática, indústria automobilística, construção civil, plásticos e energia. Países que levam a mudança climática a sério desenham políticas públicas para estímulo à redução de emissões via controle de desmatamento e reflorestamento. O potencial de mecanismos econômicos associados ao sequestro de carbono se tangibiliza gradativamente. A sociedade em geral se conecta cada vez mais ao recurso natural como alternativa de bem-estar.

Além de contar com um dos maiores ativos florestais do planeta (o segundo em volume e o primeiro em biodiversidade), o País conseguiu “domesticar” eucalipto e pinus, e passar a ser o mais competitivo do mundo em silvicultura. As empresas brasileiras de celulose e papel estão entre as mais bem sucedidas do planeta, além de serem as que mais seguem critérios de sustentabilidade.

No entanto, produzimos uma inversão: as espécies nativas passaram a ser as “exóticas”, temas de infindáveis debates sobre modelos de restauração de florestas. Nós nos distanciamos do necessário investimento em tecnologia florestal voltado para a produção em larga escala, apesar de contarmos com um arsenal biológico único de dezenas de milhares de espécies arbóreas nas matas brasileiras.

Na última década, apesar de percalços e desincentivos, a produção de conhecimento sobre plantio de nativas avançou. Dezenas de modelos de plantios foram implementados, incluindo sistemas com diversos graus de biodiversidade, combinando silvicultura com a produção de alimentos (agricultura ou pecuária). Desenvolveram-se modelagens econômicas sofisticadas, integrando esses diferentes sistemas, permitindo diálogo com gestores financeiros.

Já é bastante conhecido o conceito de contínuo florestal. Inicia com a preservação permanente de maciços florestais intocados, segue em um crescente de intervenção humana com o manejo sustentável, passa ao enriquecimento silvicultural de florestas degradadas, avança na restauração de áreas convertidas com o plantio biodiverso e depois para o plantio pouco diverso, inclui o plantio de espécies exóticas de ciclo longo (eventualmente combinadas com o espécies nativas) e termina no extremo deste contínuo, com o plantio de monoculturas de eucalipto, pinus ou teca. Todas essas alternativas podem ser combinadas com a produção de alimentos ou produtos para outras indústrias (do extrativismo em áreas de preservação a sistemas de integração pecuária-florestas). Todas são alternativas melhores, do ponto de vista de emissões, que as atividades convencionais.

Utilizando a metáfora do contínuo florestal, pode-se tratar de outros contínuos: o do uso da terra, o financeiro e o das organizações envolvidas. Nas regiões amazônicas, e em algumas propriedades rurais na Mata Atlântica, observa-se um contínuo de conversões de ambientes naturais. Maciços preservados pareiam com zonas impactadas, mas ainda com cobertura arbórea, que progressivamente se transformam em áreas completamente convertidas, produtivas ou não.

No contínuo financeiro, as instituições mais tradicionais – investidores institucionais e bancos – mantêm relações formais com as grandes empresas, cada vez mais pautadas por demandas socioambientais. Bancos de desenvolvimento, nacionais e internacionais, atuam com iniciativas de pequeno e médio porte fomentadas por governos. Organizações de investimento de impacto focam suas interações com startups e com pequenos produtores. E, por fim, a filantropia e doadores financiam a sociedade civil. Esses tipos são quase estanques, mantendo-se segmentados e com poucas interações.

Na realidade, observa-se fragmentação em todos os contínuos mencionados. Sinergias e potenciais trocas de conhecimento são pouco comuns. O setor florestal de nativas é caracterizado por projetos de pequeno porte, dispersos geograficamente, com baixa conexão com as organizações do mainstream econômico. Com tantas oportunidades, atores, conhecimentos, vasta base tecnológica em silvicultura e legislação relativamente favorável (Código Florestal), por que razão este segmento não se desenvolveu?

Certamente pelos riscos inerentes às fronteiras do conhecimento em um país sem incentivos para inovação. Possivelmente pelo compreensível foco em uma atividade florestal altamente bem sucedida e rentável, o plantio de eucalipto para produção de celulose. Eventualmente pelas excessivas discussões sobre a multiplicidade de modelos e ambições relacionadas ao uso do capital natural. Supostamente pela conexão com o ambiente de ilegalidade que domina a reputação de tudo o que envolve negócios com florestas nativas. Provavelmente pela falta de interação entre os elos dos contínuos mencionados.

O papel de coordenadores de cadeias produtivas é chave. Essas organizações, voltadas para a produção de commodities como grãos, carne ou minério, tem direta ou indiretamente, forte impacto no uso do solo. Todas acabam tendo seus negócios impactados negativamente por danos reputacionais associados ao desmatamento, a ações ilegais relacionadas à degradação de recursos naturais e a práticas sociais inaceitáveis.

Em geral, dependem de capital do mainstream financeiro que, em maior ou menor escala, tem incorporado demandas socioambientais e pressionam essas grandes corporações a “limparem” suas cadeias de produção. Igualmente crescente são requisições do mercado internacional dessas commodities para incorporação de práticas socioambientais mais equilibradas.

O Estado tem sido ineficiente no monitoramento e controle de ilegalidades associadas ao desmatamento, garimpo ilegal e grilagens. Parte relevante das ações associadas ao desmatamento e ilegalidades se dá em áreas onde o Estado tem sido incapaz de controlar o que ocorre em terras em seu poder e de prover alternativas econômicas para pequenos produtores.

Em síntese, governos não têm tido a capacidade de prover um ambiente institucional eficaz para o desenvolvimento de negócios de escala envolvendo plantio de florestas nativas. A mobilização articulada de coordenadores de cadeias de produção pode fazer a diferença.

Tome-se a pecuária, apenas como exemplo, do potencial de uma ação coletiva. Intenso esforço para controle da origem de animais tem tido êxito no suprimento direto, nas transações envolvendo a engorda e os frigoríficos. No entanto, há ainda fragilidades significativas na produção de bezerros, a cria. Um volume importante de pequenos produtores vive do provimento de animais para intermediários, em geral informais. As condições socioeconômicas em que vivem é precária, restando a alternativa de venda de parte das florestas de suas terras, legais ou não no campo fundiário, para agentes que atuam à margem da Lei. Em grande monta, possuem áreas degradadas e improdutivas. A restauração florestal pode ser opção para geração de renda, solução de passivos ambientais, saída do ambiente de informalidade em que atuam e inserção em mercados promissores.

O desafio da conexão entre um grande comprador, como os coordenadores de cadeia, e essa fragmentada franja de supridores indiretos de suas matérias-primas não é trivial. Uma boa articulação entre filantropia, investidores de impacto e o mainstream financeiro pode ser um caminho.
Na ponta das grandes corporações, instituições financeiras oferecem incentivos (green bonds já são alternativas concretas, embora incipientes) para descarbonização e melhorias das condições gerais das cadeias de suprimentos de matérias primas.

Na outra ponta, a filantropia apoia atividades da sociedade civil, mais próxima da dura realidade que ocorre nas margens do desmatamento. Desenvolvem programas voltados à introdução de tecnologias de produção de florestas integradas à de alimentos (SAFs).

No meio, investidores mais pacientes, agências de desenvolvimento e programas governamentais, oferecem alternativas de capital financeiro e apoio à incorporação de melhores práticas de gestão para produtores interessados em mudar suas práticas. Na mineração, oportunidades semelhantes podem ser vislumbradas, com iniciativas de restauração florestal voltadas para melhor interação com comunidades do entorno de suas plantas e infraestrutura de transporte.

Uma maior articulação poderia ter como foco cinco frentes: a) o desenvolvimento de P&D pré-competitivo da silvicultura, b) um esforço de P&D voltado ao desenvolvimento de novos materiais e aplicações de fibras oriundas de árvores, c) fortalecimento de mecanismos de mercado para carbono, d) articulação entre os atores do mercado financeiro, como fundos institucionais, bancos, investidores de impacto e filantropia, para financiamento integrado de cadeias produtivas que utilizem as diversas formas a restauração florestal, cada um com sua escala, perfil de risco e demandas por retornos, e) mobilização conjunta no sufocamento do desmatamento e do mercado de madeira ilegal.

Ações articuladas terão efeito na redução de riscos das atividades florestais envolvendo nativas, não só no campo tecnológico (plataformas pré-competitivas de P&D são muito mais eficientes que a atual fragmentação de projetos), mas também na arena institucional (regras mais eficazes e legal enforcement para sufocamento das ilegalidades). Mudanças de escala e integração de conhecimentos certamente gerarão resultados na produtividade silvicultural e desenvolvimento de produtos, com melhores taxas de retorno e riscos menores.

*É empresário e conselheiro de organizações

[Foto: Kasturi Laxmi Mohit/Unsplash]

 

ROBERTO S. WAACK

É membro dos conselhos da Marfrig, Wise Plásticos, WWF Brasil, Instituto Ethos, Instituto Ipê e Instituto Arapyaú e visiting fellow do Hoffman Center da Chatham House (Londres). Tem uma longa carreira como executivo e como empreendedor, tendo atuado em empresas nas áreas farmacêutica, de biotecnologia e florestas. Foi CEO da Fundação Renova, entidade responsável pela reparação do desastre de Mariana (MG), co-fundador e CEO da Amata S.A. e CEO da Orsa Florestal, além de diretor da Boehringer Ingelheim e Vallée. S.A. É cofundador da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. Atuação profissional com concentração em governança, planejamento e gestão estratégica, gestão tecnológica&inovação e sustentabilidade. Formado em biologia e mestre em administração de empresas pela USP.

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